quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Luzes, câmera... ação!

Dona Maricota foi uma estrela no espetáculo de fim de ano da escola e fiquei muito surpresa com a performance dela no palco! Ela estava segura, senhora de si e o mais importante: FELIZ DEMAIS! Ela realmente se divertiu muito... A coreografia exigia malabarismos que ela se recusaria a tentar há alguns anos. Agora, não só ela quis participar, como também se ofereceu para fazer a parte mais complicada! Apesar da minha felicidade, senti um nó na garganta e foi impossível não pensar no Sr. T. Como ele teria vibrado e se orgulhado da filha no palco, como tem coisas dele nela! Não senti tristeza por ela, está claro que para ela agora pouco importa, mas senti tristeza pelo que os dois perderam. A vida é dura mesmo, por mais que seja possível dar a volta por cima e desafiar o destino.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Doutores da alegria

Uma das características (como dizia um professor meu, pessoas não tem defeitos e qualidades, tem características) do Sr. T mais irritante era a sua discrição. Ele simplesmente não falava das pessoas, não contava coisas sobre a vida dos outros e também não alardeava as coisas que fazia. Eu ficava louca da vida quando descobria que ele tinha feito coisas importantes tempos depois. Lembro que só soube que ele ganhou um prêmio importante como melhor ator muito tempo depois de o conhecer. Quando o pai dele esteve doente no hospital para tratamento de câncer, o Sr. T me contou que ficou comovido com as crianças que se tratavam lá. Nunca me disse nada sobre o seu desejo de ser voluntário ou fazer qualquer trabalho no hospital. Um belo dia, semanas depois da sua morte, recebi um telefonema do pessoal do hospital. Era uma moça querendo saber se ele iria ao encontro marcado para a semana seguinte. Eu estava apática, mas mesmo assim fiquei com as orelhas pegando fogo, como assim "um encontro"? Respondi rispidamente que ele não poderia ir e a minha interlocutora, entre decepcionada e sem-graça resolveu explicar do que se tratava. - "Aqui é do hospital do câncer, o João se comprometeu conosco de participar da festa do dia das crianças, por isso estou ligando para confirmar". Nem preciso descrever o tamanho da minha surpresa e perguntei se ele costumava trabalhar lá com frequência. A moça respondeu que sim, que ele ajudava muito na ala das crianças, mas que tinha sumido nas últimas semanas e por isso tinha resolvido ligar. Enquanto ela falava, eu digeria a minha surpresa, pensando no tamanho daquele coração que viveu ao meu lado e toda a injustiça do mundo enquanto me preparava para contar para a moça que ele não abandonou o trabalho voluntário no hospital, ele tinha morrido. A surpresa e a tristeza dela foram tão doloridas quanto todo o resto de nossa conversa. Depois de um tempo, fiquei pensando que nunca tinha visto o Sr. T no palco, quando eu o conheci ele já não atuava mais. Acabei sorrindo enquanto pensava: como eu gostaria de ter visto o Sr. T como um dos doutores da alegria!

domingo, 6 de outubro de 2013

A tal de felicidade...

Viver não é um exercício automático, repleto de tarefas diárias. Quem vive assim é apenas um autômato, alguém que reproduz os movimentos de uma pessoa, mas que não exerce a nossa principal condição humana: o livre arbítrio. Não que as pessoas façam isso conscientemente ou por maldade, em algum momento de nossas vidas, por diversas razões, abrimos mão dos nossos sonhos e esquecemos quem já fomos um dia. Sim, somos feitos de sonhos, desejos e aspirações e quando isso tudo deixa de existir, desistimos também de nossa condição humana. Um outro lado da moeda é a arrogância da imutabilidade. Pensamos que tudo será sempre eterno: a nossa estrutura familiar, a nossa casa, os nossos filhos, o nosso trabalho... Quando alguma coisa sai fora do nosso controle ou das nossas expectativas, nos vitimizamos e culpamos o destino (ou os outros) por nossas perdas. Não é preciso viver muito para perceber que a vida tem um pouco de tudo, menos imutabilidade. É só olhar para os últimos dez anos e contabilizar as amizades, as parcerias, os trajetos... Provavelmente metade disso deve ter mudado, pessoas trocaram de trabalho, de moradia, de marido, amizades que vão e vem, mais próximas ou menos próximas. Felizmente (ou não), a vida se encarrega de nos lembrar que tudo é imprevisível. Não existe cálculo, projeto, meta que resista ao imponderável! E lá estará você, começando do zero novamente, reconstruindo pedra por pedra o seu caminho. O recomeço faz parte da vida, da nossa essência, do que somos... O bom é que uma vez que aprendemos como as coisas funcionam, podemos olhar a vida com uma perspectiva diferente. Hoje eu não deixo de viver os momentos com toda a intensidade que eles merecem. Faço questão de cada abraço, cada palavra, cada momento, cada cafonice, cada sorriso, cada amizade, cada esperança... Eu respiro a vida em todos os seus elementos, sem medo e sem tristeza. Não existe mais o "apesar de". Viver assim me trouxe apenas dois sentimentos: o frio na barriga e a felicidade!

terça-feira, 16 de julho de 2013

Discriminação: depende dos olhos de quem vê!

Já contei aqui no blog sobre o perfil aguerrido e militante do Sr. T. Ele se vestia e se comportava de acordo com os seus próprios princípios e podem acreditar: isso significava estar muito longe dos parâmetros conservadores da nossa sociedade. Certa vez, ele precisou fazer um pagamento no cartório que ficava dentro do fórum. Ele estava vestindo um daqueles bermudões grunges de sempre, com botas de escalada e camiseta de malha preta com alguma imagem/texto do tipo "free Mandela" ou "go home Yankees". Quando ele tentou entrar no cartório, foi barrado pelo funcionário que mostrou uma placa e disse que era proibido entrar no cartório com vestimenta inapropriada. Ah, senhores, o Sr. T deu a moléstia como dizem por aqui e fez um discurso inflamado, afirmando que a justiça é excludente, que as pessoas não podem ser tratadas assim e completou:

- Isso é uma discriminação! Vocês estão me discriminando!

O chefe da seção, provavelmente apavorado com a possibilidade do Sr. T estar se referindo à questão racial, levantou da mesa e disse bem alto:

- Ninguém aqui está discriminando o senhor! Nós não discriminamos ninguém!

- Estão sim! Eu estou sendo discriminado! Vocês estão impedindo a minha entrada por causa da minha aparência! Eu estou sendo discriminado! devolveu o Sr. T se referindo ao vestuário.

Naquela altura, o cartório inteiro estava em polvorosa com os funcionários nervosos, sem saber como aquilo iria terminar. O chefe continuou reforçando o seu discurso:

- Não é discriminação, o senhor não pode entrar por causa da sua roupa, mas nós não discriminamos ninguém!

- Como não é discriminação? E se eu fosse muçulmano? Vocês iam me obrigar a vestir uma calça comprida? E isso não é discriminação? Vocês discriminam as pessoas sim!

Discrimina, não-discrimina, o bate-boca continuou com um se referindo ao conceito mais amplo de discriminação, baseado nas roupas e na questão social, e o outro morrendo de medo de levar um processo por discriminação racial. Quando o Sr. T me contou essa história, eu perguntei:

- Mas e aí? E como terminou o bafafá?

Ele abriu um sorriso triunfante e respondeu:

- Owwwww, queridinha, eu paguei a conta, é claro... E de bermuda!

terça-feira, 25 de junho de 2013

Escreva!

Todas as vezes em que penso nas coisas importantes que o Sr. T dizia, sempre lamento que ele não tenha escrito sobre elas. Foram coisas muito importantes que se perderam, ideias tão ousadas que quase pareciam desvarios. Hoje, muitas delas estão se desenhando e mostram que ele não tinha delírios ou que vivia nas nuvens, ele apenas vivia à frente do seu tempo. Sinto falta das considerações dele sobre política (na política, a roda grande gira dentro da pequena, ele dizia), das ponderações sobre as questões étnicas, do seu olhar sobre as artes, o teatro, o trabalho de ator, das nossas discussões intermináveis sobre questões sociais, econômicas e espirituais. Tudo isso se perdeu na espiral do tempo e só existe hoje na memória das pessoas que conviveram com ele. Eu disse várias vezes que ele escrevesse, que registrasse os seus pensamentos porque seria muito bom ter um registro de tudo que ele pensava. Li que o deputado Tiririca aprovou uma lei para que as crianças circenses pudessem estudar em qualquer escola pública nas cidades em que o circo estivesse. O Sr. T fez uma proposta semelhante quando era vereador, mas onde estarão esses registros? O que eu escrevo aqui é apenas um fragmento das minhas conversas, do meu olhar e da minha percepção. Quantas outras percepções não existirão entre as pessoas que conviveram com ele? A minha motivação em escrever está na certeza de que as palavras se dissolvem no tempo e nada podemos fazer além de lamentar o que foi perdido. Sou movida pela voz que martela na minha cabeça todos os dias: escreva!

terça-feira, 5 de março de 2013

Dia 5 de Março


As datas importantes foram criadas para marcar as nossas lembranças com comemorações, presentes, rituais e outras coisas que a sociedade convenientemente decidir. Algumas pessoas resistem aos modelos e ao que é convencional e não dão muita importância aos aniversários, cerimônias de casamento, batizados etc. A resistência tem as suas recompensas, hoje seria o aniversário do Sr. T e a ausência de comemorações espetaculares ao longo da vida, tornou o dia de hoje um dia comum. O tempo passa e a ausência das pessoas que foram importantes para nós torna-se uma lembrança esmaecida de uma outra vida, de um tempo em comum que já não volta mais. E seguimos em novos caminhos, novas estruturas, mas o espelho de uma outra vida sempre estará lá. Você pode decidir não olhar para ele durante algum tempo, mas não pode impedir a existência dos seus reflexos. Time flies...

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Lancelote, de Chrétien de Troyes (3)

Nesse prazer amoroso, experimentam tanta felicidade que vem dos beijos e de toda a festa dos sentidos que eles se sentem invadidos por uma alegria prodigiosa. Nunca se ouviu falar de uma maravilha igual. Mas é melhor que eu me cale sobre isso. Toda história deve respeitá-la pelo silêncio. A maior e mais deleitosa das alegrias foi aquela que a nossa história pretende conservar secreta. Lancelote passou toda a noite naquele deleite. Mas chegou o dia, inimigo da sua alegria, pois ele tem que sair de perto de sua amiga. E parecia um mártir, pois separar-se dela era um suplício. Seu coração insiste em voltar para o lugar em que a rainha ficou. Ele não tem forças para controlá-lo. Aquele coração está muito enfeitiçado para consentir em abandonar a rainha. O corpo vai, mas o coração permanece.

Troyes, C. Lancelote, o cavaleiro da carreta. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.

Lancelote, de Chrétien de Troyes (2)

Inclina-se diante dela em adoração, pois seu respeito pelas relíquias dos santos não é maior do que o que tem por ela. Mas a rainha estende-lhe os braços, abraça-o e aperta-o ao encontro do coração, puxando-o para perto de si na cama. Acolhe-o com um fervor sem reservas, pois Amor e o seu próprio coração inspiram os gestos. É Amor que a leva a recebê-lo tão bem. Mas se ela amou Lancelote com tão grande amor, ele ainda se mostrou mil vezes mais apaixonado, pois Amor abandonou todos os outros corações para vir transbordar dele. Melhor ainda, foi no seu coração que Amor se revigorou a tal ponto que esmoreceu nos outros. Agora os votos de Lancelote foram exaltados, pois a rainha se compraz com sua companhia e suas carícias, ele a tem nos braços e ela também o abraça.

Lancelote, de Chrétien de Troyes (1)

Lancelote, o Cavaleiro da Carreta (em francês: Lancelot, le chevalier de la charrette) é um poema em francês antigo escrito por Chrétien de Troyes no início do século XII. O livro é sobre o caso de amor entre Guinevere e Lancelote e tem como fundo a corte do Rei Artur, Camelot. Para quem não se lembra, Guinevere é esposa de Artur e vive um romance com o homem de confiança do rei, Lancelote. A tradutora da edição brasileira (editora Francisco Alves) afirma que "a ideia de escrever Lancelote, o cavaleiro da carreta foi sugerida a Chrétien por Marie de Champagne, que lhe deu o tema do romance, como ele afirma na introdução do livro. Chrétien que era piedoso e austero, não parecia ter se sentido muito à vontade ao desenvolver a história de amor de Lancelote pela esposa do seu soberano. Não devia concordar tampouco com o comportamento de Guinevere, que cede à paixão e se entrega ao seu amado. Suas convicções religiosas tornam a tarefa difícil e ele a cumpre quase como uma obrigação. Isso pode ser observado no início do romance, pelo emprego da cojunção já que, que exprime uma causa imposta, contra a qual nada se pode fazer. O autor parece desculpar-se pelo tema tratado". Particularmente, eu gosto muito da história por toda a luta que interna e externa que os protagonistas precisam travar para viver o seu amor. Eu desconfio sempre dos amores convenientes e de acomodação. Acredito que a convergência de interesses não tem nada a ver com o amor. O relato da noite de amor entre Lancelote e Guinevere é bem moderninha para o século XII. Chrétien pode ter ficado desconfortável ao escrever o livro, mas a Senhora Marie de Champagne deve ter se divertido bastante com o texto!