segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Drácula, de Bram Stoker

A questão central do filme Drácula, de Bram Stoker, não é explicitar o terror, apesar do tema e das cenas de suspense em vários momentos. Dirigido por Coppola, o filme é uma história de amor sofrida, complexa, angustiante e violenta. O mérito do texto de Stoker é justamente desvelar um tipo de amor que embora intenso e visceral, não é um amor belo ou digno. Vlad é um monstro (não importa a aparência que mostre) que age destruindo vidas em busca de alcançar o seu propósito: reconquistar o seu amor do passado, Mina. O filme (assim como o livro) nos provoca uma inquietação enorme quando percebemos que Mina se sente atraída por Vlad e vai em sua direção, apesar de todos os avisos e ameaças. A ausência de humanidade e compaixão de Drácula está muito bem representada no ataque que ele desfere sobre a melhor amiga de Mina (a cena do monstro sobre ela no jardim é perturbadoramente erótica). Mesmo assim, Mina revela o seu amor, deixando o leitor/espectador perplexo sem conseguir entender como ela é capaz de amar um monstro. Mina não é enganada, ela sabe a verdade e vê Drácula com suas diversas aparências, inclusive como um ancião e demônio. Em nenhum momento ela parece repugnada com a aparência dele ou com os seus gestos, tudo que vemos nos olhos de Mina é amor e desejo. Isso sim, é arrepiante... A relação de Vlad/Drácula e Mina pode ser explicada por uma história passada e pelo destino, muito mais do que pela escolha ou vontade dos dois. Os dois estão presos em sua própria história e precisam encontrar um fim para, finalmente, se libertarem. Na minha percepção, não é o amor de Mina por um monstro que me inquieta. O que me deixa inquieta é a possibilidade de um monstro realmente amar alguém...

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Meu Tio o Iauaretê

O Sr. T costumava perder um tempo enorme me observando e analisava os meus movimentos sempre que tinha oportunidade. Uma vez, eu estava me vestindo para sair e ele me observava deitado na cama. Ele parecia pensativo enquanto acompanhava os meus movimentos simples, como passar creme no corpo, enfiar um vestido pela cabeça, calçar uma sandália de salto alto... De repente, ele disse:

- Agora eu já sei! Você é a onça!

- Como? perguntei assustada.

- A onça! Você é a onça do conto do Guimarães Rosa, Meu Tio o Iauaretê.

- Hum... Não me lembro da história.

- É uma história linda de amor. Ele caça uma onça o tempo todo e no final se apaixona por ela. O amor dele é tão grande que ele vira onça também.

- Nossa! Não sei bem se é uma história de amor...Por que eu pareço a onça?

- Você se movimenta como ela e a cada dia que passa, eu quero me transformar em onça também para ser um só com você.

Alguns dias depois, ele trouxe o conto para que eu pudesse ler e entender a percepção dele sobre nós. Muito mais do que o contraponto mulher/onça, ele estava falando sobre sedução. O conto é sobre a sedução levada ao limite, até o combate com o seu objeto de desejo e a sua escolha entre perecer ou resistir. Encontrei uma excelente análise da sedução do texto de Oliveira (2009): "os termos usados por Guimarães Rosa para definir o tio do narrador – Iauaretê ou Jaguaretê – vêm do tupi yaware’te, que significa “onça verdadeira”. A ficção trabalha em sua função mimética e reproduz em narrativa o que o leitor vivencia: o espanto constante com a necessidade de escolher entre o que ele quer acreditar que seja verdade e o que ele prefere entender como mentira. A armadilha foi montada: em meio a falsas intenções e aproximações com a verdade, o leitor se acha seduzido pela obra. Mais uma vez a arte exerce a sedução da mímesis, através do pseudos". Eu ainda iria além, as percepções de verdade ou mentira são construídas a partir do jogo de sedução e assumem diferentes formas durante o processo. Não existe verdade no conto de Guimarães Rosa, buscar a verdade significa se perder ainda mais no labirinto das intenções e dos pseudos. Ao perceber que somente através das percepções será possível sair do labirinto, cabe a cada um estabelecer as suas escolhas. A do Sr. T foi perecer diante daquele amor, transformando a sua forma humana em onça.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Algumas reflexões sobre o sofrimento

Uma das coisas mais importantes que aconteceu na minha vida depois da morte do Sr. T foi descobrir a minha total incapacidade de provocar sofrimento em qualquer pessoa. Lidar com a dor dos outros se tornou um fardo que eu não conseguia mais carregar. O meu maior desafio nos últimos anos foi lidar com o sofrimento da minha filha todos os dias por causa da falta do pai. Sei que é inevitável que causemos mágoas nas pessoas que nos cercam ao longo da vida, fazemos isso sempre, intencionalmente ou não. Muitas vezes os interesses dos outros se antagonizam com os nossos e mais uma vez alguém irá sofrer na equação da vida. Posso até entender (mas não aceitar) que alguém cause sofrimento em outra pessoa por um interesse específico: promoção, desejo, ambição, ciúme, inveja... Pior ainda é quando o sofrimento é causado de forma gratuita, apenas pela falta de empatia com o outro. A coisa mais importante que eu aprendi com o Sr. T durante a nossa (curta) vida em comum, é que só o amor faz tudo valer a pena. E para amar, é preciso realizar gestos de bondade e generosidade com o outro todos os dias. Não é possível impor sofrimento ao outro, não importa sob qual justificativa. Quando fazemos outra pessoa sofrer, principalmente de forma deliberada, não existe mais amor. Já descuidei do amor dos outros muitas vezes ao longo da minha vida. Hoje, não posso sequer pensar em ferir alguém. O grande problema na decisão de não magoar os outros é que você não pode ficar blindado e impedir que os outros magoem você. É como dirigir um carro, você pode ser um excelente motorista e não bater em ninguém, mas não pode impedir que alguém bata em você. Em casos assim, você pode se deixar levar pela amargura e pelo ressentimento ou pode optar por se libertar e entender que ninguém nesse mundo pode ser responsável por nossa felicidade ou infelicidade. O sofrimento ocasional (principalmente quando é causado por outras pessoas) não define quem você é e muito menos quem você quer ser.

sábado, 3 de novembro de 2012

Então, era tudo mentira?

A Nova Onda do Imperador é uma das minhas animações favoritas. Os diálogos são impagáveis e a dublagem brasileira (com Selton Melo e Marieta Severo) fez a nossa versão ficar melhor do que a original. Eu odeio filmes dublados, mas esse vale a pena. Cuzco é um imperador mimado e egoísta que quer construir o seu palácio de verão no morro onde Pacha (um camponês) mora. Depois de demitir Yzma, a conselheira real, ela tentar matá-lo, mas o veneno é trocado e Cuzco acaba sendo transformado em uma Lhama. Por acidente, ele é carregado para a casa de Pacha e exige que ele o leve de volta ao palácio, sem se lembrar que foi a Yzma que o transformou. Pacha exige que ele construa o palácio em outro lugar e Cuzco se recusa até perceber que não conseguirá voltar sem a ajuda do camponês. Pacha salva a vida de Cuzco e ele finge fazer o acordo até chegar bem perto do palácio, quando revela a sua traição ao se negar a ajudar Pacha que fica preso na ponte. O interessante é que Pacha (mesmo sendo bom e tranquilo) encheu Cuzco de pancada ao saber que ele o enganou. A briga dos dois é bem engraçada (é a figura que ilustra esse post) e os diálogos do filme são tão legais que encontrei várias comunidades e sites na rede que reproduzem trechos das falas dos personagens.

(Pacha) - Então, era tudo mentira?

(Cuzco) - Era! Ah, não, deixa eu pensar... Calma aí... Ah, sim, era tudo mentira!

(Pacha) - Você apertou a minha mão!

(Cuzco) - É, foi. Sabe o que é engraçado nesse negócio de apertar a mão? É que eu não tenho mão!

Moral da história para ser aplicada na vida real: nunca confie em uma lhama que quer apenas usar você!

domingo, 21 de outubro de 2012

Temperos

Se eu fosse uma bruxa (coisa que eu suspeito há muito tempo) a minha magia seria revelada sempre na cozinha. Adoro a alquimia dos cheiros e sabores e o resultado da minha ação na cozinha está sempre relacionado com o meu estado de espírito. Se estou feliz, equilibrada e tranquila, os caldos fervem em cores brilhantes e os assados cheiram pela casa inteira, se espalhando pelos corredores e andares do prédio ao ponto dos meus vizinhos me perguntarem o que estava cheirando tão bem. Se estou triste, o resultado é sofrível, sem graça e sem brilho... Semana passada, eu ganhei de presente vários tipos de temperos comprados com um carinho do tamanho do mundo, em lojas especializadas no Centro do Rio que parecem ter saído do Beco Diagonal Potteriano. Fiquei enlouquecida com os aromas da pimenta rosa, do chimichurri mexicano, da sálvia, do curry, da baunilha, do açafrão... Fui correndo comprar vidros para guardar os meus temperos, fiz etiquetas e organizei todos na janela da cozinha. Lindos! Acordei hoje disposta a caprichar na alquimia e misturei temperos e sabores para o almoço que estão perfumando a casa toda. Enquanto eu cozinhava, fiquei pensando na delicadeza dos presentes que revelam a nossa alma. São sempre presentes simples na perspectiva material, mas complexos em sua execução: exigem planejamento, conhecimento, seleção e boas doses de adivinhação. Pode ser um anel, uma blusa confortável ou uma lista de temperos variados e exóticos... A felicidade que transborda ao receber um presente assim, recoloca tudo em seus lugares e provoca uma reflexão interessante: se você é capaz de compreender a dimensão da grandiosidade desses gestos, será capaz de abandonar os propósitos mesquinhos repetidos ao longo de uma vida inteira e entender que todo amor não pode ser em vão!

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O Grito + Pink Floyd

Já me senti assim muitas vezes... Invisível, angustiada, mas ainda assim, sem medo da morte!

Fonte: Revista Entremundos

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Queridinha

A pergunta foi simples e direta, resultado de uma conversa boba sobre comportamento: - E o Sr. T? Como ele chamava você? Estávamos conversando sobre como os casais se tratam, rindo dos apelidos ridículos que colocamos em nossa cara-metade quando estamos apaixonados, como Mô, Mor, Benhê etc. Acessei a memória buscando a resposta. Não encontrei de imediato. Procurei a memória auditiva de quando ele me chamava para alguma coisa. Sabia que ele me chamava de Ana, mas muito raramente... Como ele me chamava, meu Deus! Qual era o nosso tratamento? Tentei visualizar a cena do Sr. T entrando pela porta e caminhando em minha direção enquanto dizia alguma coisa. A dor foi inevitável. O fluxo de imagens reavivadas na memória é sempre doloroso... Eu conseguia reproduzir as imagens, mas não podia ouvir. Eu não conseguia lembrar! Pânico... Comecei a suar frio enquanto o meu coração dava pinotes. Como eu podia não lembrar! Como? Senti um nó na garganta, os olhos arderam com uma vontade enorme de chorar. Levantei da cama agitada e fui em direção ao quarto da filha mais velha:

- Filha, você se lembra de como o Sr. T me chamava? Ela me olhou espantada, pensou por alguns segundos e começou a descrever:

- Ele a chamava de Ana, nunca usou Bia ou Ana Beatriz. Chamava de "meu bem" e quando explicava alguma coisa para você dizia "minha querida". Quase o tempo todo dizia "queridinha"...

Isso! Queridinha... Ou minha querida... Sentei na cama aliviada. Isso! Pude visualizar novamente a imagem dele em várias situações me perguntando coisas ou me chamando. - Mas é claro, minha querida! Quer que eu faça isso, queridinha? Meu Deus, consegui lembrar! Quando eu resolvi escrever esse blog foi justamente para não esquecer as pequenas coisas do nosso cotidiano porque quando a dor é muito grande, o mecanismo de defesa do corpo (e da alma) apaga as imagens, as experiências e os sons da nossa memória. O registro de cada lembrança minha aqui no blog sempre me faz chorar, é inevitável. Mesmo assim, depois de mais de cem postagens, ainda assim, não foi o suficiente. Eu esqueci de algo básico e essencial: o carinho enorme com o qual o Sr. T me tratava!

domingo, 30 de setembro de 2012

Mary e Max

May e Max é uma animação stop motion com uma história repleta de melancolia, mas tão real que é possível sentir um aperto no peito com a coragem do roteirista. "O filme acompanha dois personagens solitários, cujas vidas se cruzam pelo maior dos acasos: uma página aleatória aberta em uma lista telefônica. Motivada por uma dúvida infantil, a australiana Mary Daisy Dinkle, 8 anos, decide escrever ao nova-iorquino Max Jerry Horowitz, 44 anos. Junto à carta, alguns desenhos, uma barra de chocolate e a dúvida: "de onde vêm os bebês nos Estados Unidos". A correspondência inocente muda a vida de ambos para sempre, iniciando uma história que transcorre por mais de uma década". Não tem final feliz, os protagonistas são feios e a vida deles é um desalento só. E o mais perturbador? É assim mesmo que a vida é! Fiquei refletindo sobre como a nossa vida é uma compilação de momentos felizes que são pontuais, limitados e nem sempre recorrentes. Não andamos nas nuvens o tempo inteiro, não enxergamos cores vibrantes ou o calor do mundo em cada detalhe do nosso cotidiano. Passamos a maior parte do tempo fazendo coisas que não gostamos, em lugares que não queríamos estar enquanto sonhamos com aquele momento mágico de diversão ou descanso. Imaginamos um futuro pleno e repleto de felicidade enquanto vivemos o presente repetitivo e insosso. Invariavelmente, somos nós mesmos que sabotamos a nossa possibilidade de ser feliz, seja porque acreditamos no que a mídia nos diz sobre a felicidade ou porque não conseguimos domar o nosso caráter e ser fiel aos nossos desejos e promessas. Seja como for, Mary e Max é um relato singelo de nossas próprias reflexões e a falta de coragem em assumir o que realmente nos torna feliz.

sábado, 22 de setembro de 2012

O caso do sutiã verde rendado

O Sr. T frequentava um pequeno salão de beleza para fazer as suas tranças todo mês e era muito amigo da dona e da manicure. Por causa dele, eu comecei a frequentar o mesmo lugar e quando as duas se mudaram para trabalhar como funcionárias de um grande cabelereiro da cidade, eu acompanhei a mudança. Hoje, neste novo local, conversamos bastante sobre ele e nós três nos lembramos de uma história ótima sobre o meu ciúme e a comédia de erros que a vida pode ser. Como eu já contei aqui, o Sr. T tinha o costume de oferecer carona para muitas pessoas. Um dia, quando eu estava tirando as compras da mala do carro, encontrei um saco cheio de roupas.

- De quem são essas roupas? - perguntei.

- Ué, não sei. Não são suas? - ele respondeu distraído.

- Não, não são... - respondi enquanto tirava da sacola um vestido preto, algumas roupas de criança e uma bermuda.

- Então deve ser de alguém, provavelmente foi a minha mãe que esqueceu aí - disse ele distraído.

Exatamente naquele momento, eu retirei um sutiã verde rendado e lindíssimo de dentro da sacola.

- A sua mãe tem um sutiã desses? - falei já ficando com o pescoço vermelho e a voz alguns decibéis acima do normal.

Ele ficou visivelmente embaraçado e respondeu: - Rosângela! Deve ser de Rosângela! Semana passada eu dei carona para ela até a escola!

- Você está me dizendo que este sutiã é da sua irmã que é evangélica? É isso mesmo? Você realmente quer que eu acredite nisso?

- Mas eu não sei de quem é, oras! Se você não sabe, muito menos eu!- respondeu nervoso.

Bom, nem preciso dizer que eu rosnei durante semanas e o pobre Sr. T tomou o maior chá de abstinência sexual da história moderna. Meses depois, nós estávamos na cabelereira e ela de repente pergunta:

- T. você não encontrou uma sacola minha dentro do seu carro? Eu tenho quase certeza que perdi uma bolsa de roupas naquele dia que você me deu uma carona...

O Sr. T fez uma cara de alívio e disse: - Graças a Deus que você está dizendo isso! A sacola era sua! Viu, Ana? As roupas eram de Sara!

Eu, com a maior cara de bunda do planeta, ainda tentei colocar a história à prova:

- O sutiã verde é seu, q-u-e-r-i-d-a? - perguntei com a voz gélida.

- Mulher, eu pensei que tinha perdido o meu sutiã caríssimo! Foi presente de dia dos namorados do meu marido!

Enquanto isso, o Sr. T foi até o carro pegar a maldita sacola que foi examinada e avaliada por todos que estavam no salão. - O meu vestido, a bermuda de fulano... gritava Sara enquanto examinava cada peça de roupa perdida.

E o Sr. T: - É, Sara, nada como o tempo para fazer justiça com os inocentes...Você não imagina o inferno que eu vivi por causa dessa sacola de roupas!

Nem preciso dizer que depois que nós contamos a história, todo mundo caiu na gargalhada. Acho que estão rindo até hoje... Portanto, cremosas, quando vocês encontrarem um sutiã verde rendado perdido nas coisas do seu bofe, esgotem todas as possibilidades antes de dar um piti. Nada pior do que ficar com cara de tacho depois de uma comédia de erros como essa!

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Às vezes, você tem que deixar ir...

"Sometimes you gotta let go." Balão do Snoopy, em homenagem ao Banksy (via Digital Art, no Facebook)

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Uma pequena grande vitória

A professora de D. Maricota me disse que ela está, finalmente, lendo e escrevendo. Ela alcançou as outras crianças e chegou ao patamar desejável de leitura. As crianças escolheram um poema para ler hoje em sala e ela escolheu ler um pequeno poema da Cecília Meireles. E leu tudinho! Você não podem imaginar o tamanho do meu alívio... Definitivamente, os estragos não foram permanentes!

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Agosto

Agosto é um mês complicado, dia dos pais, aniversário de Dona Maricota, lembranças, lembranças e mais lembranças... Definitivamente, Dona Maricota parece ter encontrado um caminho para superar a sua própra tristeza e se divertiu bastante com as comemorações do seu aniversário. A festa foi na escola, mas no sábado tivemos um bolo em casa. O tema do bolo foi o livro "O Carteiro Chegou", a mais nova obsessão literária de D. Maricota. Os irmãos vieram, os primos, os vizinhos, a casa ficou bagunçada, as crianças tiveram dor de barriga por causa do consumo excessivo de porcarias e eu, como sempre, amaldiçoei as festas infantis do universo por três gerações.

Na continuação das comemorações, fomos visitar a mãe do Sr. T ontem. Foi muito doloroso ver D. Linda tão frágil, pequenina e, como sempre, comovida com a presença da neta querida, lembrança viva do seu filho preferido. Como sempre, ela costurou um vestido lindinho para D. Maricota e combinou de ir nos visitar no fim de semana levando a máquina de costura para fazer muitos vestidos com a ajuda da neta. Nem preciso descrever o sorrisão de D. Maricota ao se imaginar pilotando uma máquina de costura... Ontem, já no fim da visita, ela quis saber se D. Maricota ainda fala no pai, se faz perguntas ou se tem lembranças.

- Todos os dias, repondi. O bom é que a dor quase desapareceu e ela só fala das lembranças boas. Então, ela me disse uma coisa que doeu fundo no meu coração:

- Eu rezo todos os dias por ela porque de todos, foi ela quem mais sofreu com a perda do pai. E o pior de tudo: sofreu calada!

Sim, Dona Linda tem razão. Todos nós somos adultos e suportamos o revés da vida com a nossa bagagem estruturada em anos de experiência, conhecimento e resignação. Dona Maricota perdeu o seu "papaizinha" sem sequer entender como ou porque. Ela voltou a rir, mas procura entender todos os dias porque sofreu essa perda. E é por isso mesmo que eu continuo achando a vida muito injusta...

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Notas sobre um webromance: café da manhã colonial

A minha apresentação no evento estava marcada para às 10 horas. Como sempre, eu terminei de organizar os slides algumas horas antes (essa incrível segurança para falar sobre os temas que domino de trás para frente ainda vai me deixar na mão um dia...). Descemos apressados para tomar o tal café da manhã colonial oferecido pelo hotel. Entramos distraídos de mãos dadas no salão com piso de tábua corrida e cortinas de renda na janela. Várias pessoas ocupavam as mesas, todos conhecidos de outros trabalhos e instituições. Era possível ouvir o zumbido das conversas do lado de fora do salão, mas assim que nós entramos, as conversas cessaram. Todos interromperam o que estavam fazendo e nos olharam. Sabe aqueles três segundos de constrangimento que você não sabe muito bem a razão de ser objeto de interesse das pessoas? Pois é... Uma olhada rápida e me dei conta de que éramos o único casal hospedado no hotel que não dormiu a noite toda e, provavelmente, não deixou ninguém mais dormir... Caminhei em direção à mesa com o rosto pegando fogo enquanto as pessoas nos seguiam com o olhar. As conversas foram retomadas em um tom mais baixo, embora as pessoas continuassem a nos olhar com curiosidade. Algumas pessoas sorriam como se estivessem satisfeitas em confirmar a identidade secreta dos amantes destemperados... Como diz uma amiga querida: na terra da desesperança, as pessoas se incomodam muito com quem encontra um amor! E eu, toda linda com o meu vestido de linho chique e (muito) corretivo para as olheiras, só pensei em uma coisa: nunca mais eu me hospedo acompanhada no mesmo hotel que os meus colegas de trabalho! Fim.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Notas sobre um webromance: três dias que mudam a sua vida...

Nada mais puro do que um coração desavisado... Quando se está desarmado, é impossível prever o que pode acontecer. Todos nós temos certezas na vida no que diz respeito aos relacionamentos, sabemos disso porque conhecemos a regra e não as exceções. Eu costumo dizer que depois dos 40 anos existe só um tipo de amor possível: o amor pantufa. É aquele amor fofo, meigo, repleto de afinidades, estabilidade, no qual um completa o outro a partir das lacunas de sua vida. Cada um de nós carrega muitos vazios dos relacionamentos passados que queremos preencher e um relacionamento na época mais madura da nossa vida pode ser perfeito para isso. Definitivamente, não esperamos encontrar na maturidade um tipo de amor visceral que nos coloca de cabeça para baixo e muda o rumo de nossas vidas. O tipo de amor que faz o nosso coração bater forte, quase saindo pela boca quando ouvimos a voz do outro. Que nos faz perder o sono e a fome. Que supera as limitações físicas que temos e nos permite extrapolar todos os sentidos em um jogo erótico sem fim. Ou que transforma o cheiro do outro em uma espécie de afrodisíaco que nos persegue por todos os lugares. Até mesmo um amor que produza uma sensação de posse absurda, daquelas de querer prender o seu objeto do desejo no porão, amarrado com cordas e fita silver tape! Durante três dias, eu e o Sr. L dormimos pouco mais do que uma hora e meia por noite, fizemos cinco refeições, falamos de tudo sobre as nossas vidas e voltamos para casa como se um caminhão carregado com três ogivas nucleares tivesse nos atropelado. Nada de amor pantufa, nada de equilíbrio, nada de suavidade... Parecia que toda a história de duas vidas tinha se reunido ali, naquele lugar e naquele momento. Qualquer escolha diferente de um caminho em comum significaria subverter a ordem natural das coisas. Apesar de todas as dúvidas, sentenças inacabadas e (muitas) pressões externas, eu só pensei uma coisa: quando se encontra um amor como esse, não se pode recusar a viver o que nos foi reservado.

domingo, 22 de julho de 2012

Notas sobre um webromance: Ouro Preto

Cheguei ao hotel no meio da tarde, junto com os meus colegas que também iam participar do evento. Eu sabia que o Sr. L já estava lá desde cedo, a ideia inicial era nos encontrarmos no fim da manhã, mas o meu voo atrasou. O tempo chuvoso e a neblina baixa desencadearam uma crise alérgica em mim. Meus olhos estavam inchados e eu mal conseguia respirar direito quando entrei no saguão do hotel. Nunca mais vou esquecer dos detalhes daquele hotel em estilo colonial, o silêncio dos ambientes, os sons abafados, a tábua corrida no chão, a decoração com cortinas de renda e peças do artesanato local. A recepcionista era uma moça jovem e muito simpática, enquanto eu preenchia o formulário do hotel ela me disse com um sorriso romântico no rosto: - Tem uma pessoa esperando por você ansiosamente desde cedo! Ele estava inquieto, aguardando a sua chegada. Achei graça da expressão no rosto dela, ela parecia encantada com a espera prolongada do meu querido... Vislumbrei a sombra de uma pessoa alta atrás de mim, terminei de preencher o bendito formulário com o rosto pegando fogo e olhei para trás. O Sr. L estava lá, olhando a minha nuca sabe-se lá por quanto tempo... Corri na direção dele e enfiei a minha cara no seu peito, curtindo aquele abraço de urso delicioso. Ele levantou o meu rosto e me beijou, um beijo quente, molhado que fez os meus joelhos tremerem e as pernas virarem mingau. - Ridícula! Pensei enquanto o meu cérebro duelava entre o gosto e as sensações daquele beijo e o resto de racionalidade que ainda me restava. É, eu sei, parece coisa de adolescente, mas eu queria ficar pequeninha para entrar dentro da blusa dele e não sair nunca mais. Eu tinha tanta coisa para perguntar, tanta coisa para dizer... Não fiz nem uma coisa, nem outra. Segurei na mão do Sr. L e caminhei em direção ao quarto. Não precisava de mais nada naquele momento.

sábado, 21 de julho de 2012

Notas sobre um webromance: primeiro encontro

O que se espera de um primeiro encontro? Normalmente, uma prospecção profunda do outro: em cada olhar, em cada gesto, em cada nuance do diálogo, sempre existirá uma análise implacável do outro. É no primeiro encontro que avaliamos se vai haver continuidade ou não da relação. Por isso mesmo, todo primeiro encontro é constrangedor, não sabemos onde colocar as mãos, caprichamos na roupa, somos todos ouvidos para a nossa companhia. Algumas pessoas repetem insistentemente "- É mesmo? Eu também", como se fosse um sinal de fomos-feitos-um-para-o-outro-já-podemos-casar. Não preciso nem dizer que a saia-justa é infinitamente maior nos encontros às cegas, que os americanos chamam de blind date. Entretanto, nada supera o medo (medão, pânico, paúra, ou qualquer outra expressão que o leitor preferir) de um encontro com alguém que você nunca viu pessoalmente, mas com quem já entrelaçou a alma. Não existe um padrão para o primeiro encontro, cada um construirá o seu próprio momento de um jeito diferente do outro. O Sérgio Freire, por exemplo, contou uma história linda em seu blog sobre o primeiro encontro com alguém que nunca tinha visto (e que hoje é a mãe de suas duas filhas). Eu adoro a história contada por ele, mas comigo foi diferente. Eu não esperava nada além do óbvio. Se eu fosse elaborar uma espécie de check list, seria mais ou menos assim: conversa agradável - ok, pessoa simpática - ok, afinidades em nível razoável - ok, sexo de qualidade - ok, amizade especial - ok... Só isso. Nada de querubins dançantes, borboletas coloridas, som de violinos ou fogos no céu. Eu tinha certeza de que encontraria apenas o óbvio. Não me entendam mal, não que o óbvio fosse ruim, mas seria apenas...o mesmo de sempre! Uma espécie de amor pantufa, aquele tipo de amor cálido, morno e confortável que nos serve na medida exata de nossos medos e decepções. No fundo, acho que eu desejava que fosse assim porque um amor pantufa não seria suficiente para revirar a minha alma e me tirar da minha imobilidade. Em algum canto insano da minha mente eu continuava a ter certeza de que nunca mais poderia viver uma história com alguém depois do Sr. T, embora o lado são insistisse que eu precisava seguir em frente. Caminhei em direção ao meu primeiro encontro certa de que não encontraria nada demais. Foi aí que eu errei feio...

#Update: Encontrei um vídeo bem fofinho sobre um casal que namorou durante anos e teve o seu primeiro encontro filmado por uma amiga. Como vocês podem ver, a situação é bem mais comum do que pensamos.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Flynn Rider

Flynn Rider é o herói que "salva" Rapunzel da torre, em Enrolados. É também um ladrão, interesseiro, mentiroso, manipulador e cafajeste. Apesar da sua experiência e malandragem, nada do que ele faz tem influência sobre Rapunzel. Pelo contrário! Quem manobra a relação dos dois é ela, embora ele tente se aproveitar da inexperiência dela o tempo todo. Ele faz isso quando tenta convencê-la a voltar para a torre e não destruir a relação de confiança entre mãe e filha ou quando a leva ao "Patinho Fofo" para enfrentar os bandidos fedorentos e assustadores. Entretanto, ela sempre dá o troco, encontra uma saída e continua determinada a viver a sua aventura. Ela não desiste nem mesmo quando é manipulada pela mãe vilã (que afirma que Flynn Rider está apenas interessado na coroa e não em seus poucos atrativos). Na minha opinião, essa é a perspectiva mais cruel do filme: Rapunzel cresce ouvindo que não tem atrativos, que é desleixada, feia, frágil e incapaz de cuidar de si mesma. Ninguém acredita nela, nem a mãe vilã, nem Flynn Rider. Só ela acredita que pode mudar o seu próprio destino. Penso que o que mantém Rapunzel íntegra e acima de todas as ações perversas, é a sua generosidade e decisão de se doar sempre, independente das ações dos outros.Toda vez que alguém nos diz que o outro tem apenas interesse em nós e não sentimentos verdadeiros, nos sentimos um lixo. É como se fôssemos incapazes de inspirar amor em alguém, que tudo que temos é o dinheiro, posição ou algum tipo de barganha. Além de não ser capaz de despertar amor em alguém, a pessoa que está sendo usada é uma tapada (ou ingênua, que fofo!), incapaz de perceber que o outro não sente nada (porque a pessoa não merece!) e a engana descaradamente. A solução no filme é fazer com que Flynn Rider morra para salvar Rapunzel. Ao optar por morrer, ele expia a culpa de todas as suas ações negativas e torna-se, finalmente, um herói. Na vida real, ninguém coloca a própria vida em risco para salvar o outro. Então, só nos resta nos recolher em nós mesmos e escolher melhor as pessoas com as quais nos relacionamos.

domingo, 15 de julho de 2012

Crianças índigo?

A história da nossa vida está sempre se entrelaçando com a vida de outras pessoas. São pontos em comum, trajetórias, experiências, gostos etc. que nos aproximam dos outros, amenizando o sentimento de solidão. D. Maricota está muito próxima de um amigo da escola e os dois tem passado muito tempo juntos nas férias.Os dois são mesmo muito preocupados com outros e a imaginação corre solta nas brincadeiras mais simples entre eles. Semana passada eu estava procurando os meus óculos perdidos e os dois começaram a imaginar em quais lugares eu poderia encontrá-los (dentro de um bolo, na travessa de macarrão, no forno...) Como diz a avó do Sr. Dudu, são crianças mansas e meigas, um bom exemplo da geração índigo. Para reforçar a percepção da avó coruja, os dois travaram o seguinte diálogo enquanto lanchavam na mesa da sala:

- Eu não tenho pai, sabe? A minha mãe casou com o meu pai, mas depois que me teve, largou ele. Aí, eu não tenho pai. Disse o Sr. Dudu para D. Maricota.

- Eu tive pai, Dudu, ele morava aqui comigo, mas ele morreu. Então, eu também não tenho pai! Respondeu D. Maricota.

- É, nós dois não temos pai, né? A gente queria ter pai, mas não temos. Vamos brincar de desenhar agora?

- Vamos!

Sem sofrimento, sem angústia, sem divagação. Apenas a constatação do óbvio e a segurança de que mesmo em relação aos nossos piores medos, temos a certeza de que alguém vive a mesma situação. Simples assim!

sábado, 14 de julho de 2012

Notas sobre um webromance: o primeiro passo

Eu queria dizer que tive muitas dúvidas, que eu não sabia, que a vida me pegou de surpresa. Mas não é verdade. Eu sempre soube. Desde o primeiro instante, eu soube. Durante um certo tempo, existiu apenas a expectativa, curiosidade e vontade de ficar junto. O Sr. L sabia e me dizia o que sentia. Eu não. Sou econômica nos gestos e nas palavras. O que eu sinto só me diz respeito. Acho que é uma espécie de avareza em revelar os sentimentos, mas nas interações virtuais, é preciso que alguém dê o primeiro passo. O sentimento não pode ficar preso na garganta, contido nos gestos ou presente apenas nos olhares. Não existe a possibilidade de fazer uma leitura corporal, então, é necessário que o amor se revele. Mesmo sabendo disso, eu não poderia dizer nada porque não tinha clareza do que sentia. Eu queria a proteção da distância, a segurança das impossibilidades, as lacunas da alma. Mas nós não conduzimos a nossa vida independente dos outros (felizmente ou infelizmente?)... Apesar de estar presa nas minhas certezas, acorrentada nos meus medos e impossibilidades, tive que ler e encarar a revelação do Sr. L.

- Te amo muito. Eu precisava dizer isso a você. Fiquei travando por achar que você acharia cedo, mas é o que eu sinto. #prontofalei

Caploft! Louco, maníaco, pirado! Como ele pode dizer isso assim? Levantei, dei voltas pela sala, fechei o computador, abri de novo, dei gargalhadas, tremi, li e não acreditei. Mas ele continuou dizendo... Algumas semanas depois, eu perguntei se ele não ficava magoado porque eu nunca dizia a mesma coisa. Ele respondeu como se eu fosse acessível ao olhar dos outros, como se fosse fácil me ler como um mapa... Foi neste momento que eu soube o que sentia desde o começo.

- Você já me ama... só resiste a isso!

domingo, 8 de julho de 2012

Notas sobre um webromance: um certo capitão Rodrigo...

O tempo e o vento é um dos meus livros favoritos, especialmente a história de Rodrigo Cambará. Sempre tive a impressão de que as aventuras de Rodrigo eram apenas uma pano de fundo para contar a história do seu amor por Bibiana Terra. Na minha opinião, a grande ousadia de Veríssimo é construir um herói com tantos defeitos que parece quase impossível que ele possa nos fascinar tanto. Rodrigo não chega a ser um anti-herói porque apesar dos seus inúmeros defeitos, ele carrega as qualidades de um herói: é bravo, corajoso, destemido e morre lutando pelo que acredita. As suas virtudes não superam os seus defeitos, mas torcemos por ele porque nas suas fragilidades, se revela o humano. Rodrigo poderia ser qualquer um de nós. Quando eu conheci o Sr. L, foi impossível não lembrar de Rodrigo Cambará. Os extremos dos defeitos e virtudes, a intensidade diante da vida e a disposição de não viver muito, desde que tudo o que foi vivido valesse a pena, eram muito semelhantes. O Sr. L sempre foi rebelde, indomável, tosco, luminoso, confuso, forte, impulsivo, egocêntrico e intenso. Um verdadeiro tsunami de emoções conflitantes no qual as chances de sobrevivência pareciam mínimas. No histórico do Sr. L, constavam relacionamentos com mulheres cujo temperamento variava entre a neutralidade e a aniquilação. Qualquer coisa diferente disso, poderia ser o prenúncio do caos. Eu sempre busquei a perfeição nas pessoas. Se as pessoas não se enquadrassem dentro de determinados critérios (que valiam tantos para os outros quanto para mim), eu simplesmente não conseguia estabelecer uma relação mais estreita. Sempre fui dura e inflexível, com os outros e comigo. Não preciso dizer que isso me tornou uma pessoa bastante infeliz. O Sr. T me mostrou que as imperfeições são humanas e que amar somente o que é perfeito, não é sinal de integridade. A generosidade está em compreender e aceitar as imperfeições de todas as pessoas que fazem parte da nossa vida. É preciso relativizar as fraquezas do outro para expurgar os nossos próprios defeitos e superar as nossas limitações. Não foi um aprendizado fácil, mas foi libertador. Com o Sr. L, eu pude entender o que significa estar livre para amar alguém sem pré-requisitos, sem amarras e sem condições para o futuro. Ao abandonar as minhas condições prévias, eu pude olhar o que realmente importava: o amor imenso que cabia em um coração generoso.

sábado, 7 de julho de 2012

Notas sobre um webromance: função e forma

Frequentemente, nós mudamos a vida de outras pessoas. Um toque, uma palavra, uma ação, um exemplo, uma ligação... As pessoas são transformadas por nós da mesma forma que somos transformados por elas. Isso não significa que toda influência é positiva, ela pode acontecer tanto para o bem quanto para o mal. Obviamente, não podemos prever todas as consequências de nossas ações, mas quando agimos com intencionalidade em relação aos outros, precisamos ter clareza das consequências dos nossos atos. Em relação aos relacionamentos amorosos, isso significa que os nossos desejos momentâneos (que se modificam o tempo todo) não podem vir na frente do propósito de fazer bem ao outro. Nem sempre somos nós que vamos propiciar a felicidade, tranquilidade e equilíbrio para o nosso objeto de desejo. Usei a palavra desejo de propósito porque quando sentimos amor e não apenas desejo, a nossa preocupação com o outro é ampliada e deixamos de pensar apenas no que nos satisfaz para refletir sobre o que pode satisfazer aos dois. A mola que impulsiona o desejo nem sempre é acionada por coisas boas, muitos outros elementos podem disparar o gatilho: disputa, controle, ciúmes, atração, poder, dinheiro, carência, solidão... Intuitivamente, eu sempre analisei os meus relacionamentos considerando o nível de satisfação dos dois envolvidos, quando a balança pendia para um lado só, era hora de partir. Hoje, eu consigo ir além. Acredito mesmo que temos um propósito na vida dos outros e ele sempre tem que ser direcionado para o bem. É fundamental ter certeza se eu realmente posso aportar ao outro o que ele precisa, da mesma forma que o exercício inverso precisa ser feito. Quando se tem vinte e poucos anos, é possível testar e experimentar os diferentes níveis de aproximação disponíveis, mas quando já se viveu mais da metade do que se espera da vida, não existe mais tempo para errar e acertar. É tempo de apenas decidir.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Nascer do Sol

Observar os filhos é uma arte e, no caso de D. Maricota, é quase uma ação de clarividência. Compreender todos os percursos emocionais que ela vem realizando nos últimos dois anos é mais do que uma questão de estar atenta. É, de fato, uma preocupação com o futuro dela. Não tenho mais a menor dúvida de que ela está com as lembranças esmaecidas e, às vezes, ela me pede para relembrar um fato, uma música ou uma situação. Algumas das decisões dela estão relacionadas com os flashes de memória que ela carrega como, por exemplo, não querer cortar o cabelo (eu e Sr. T discutíamos bastante por causa disso, ele queria um cabelo de sereia e eu queria algo mais prático e moderno) ou ver o sol nascer. Parece que acordar cedo para ver o sol surgir na praia, foi uma combinação dela com o pai que nunca se realizou. Volta e meia ela insiste que gostaria de fazer isso. Hoje ela acordou bem cedo, correu para a janela e quando eu perguntei o que ela estava fazendo, ela respondeu: - Eu não digo sempre que queria ver o sol nascer bem cedinho, mamãe? Depois disso, ela voltou para a cama e adormeceu quase imediatamente. Fique acordada um tempão, pensando... Afinal, qual teria sido o sonho de D. Maricota?

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Notas sobre um webromance: seis graus de separação

A teoria dos seis graus de separação afirma que todos nós estamos interligados através de seis laços de amizade. Você interage em várias listas de discussão com uma pessoa que mora na cidade x. Você mora na cidade y. Os dois estão distantes e nunca se encontraram. Vocês não tem nada em comum a não ser o trabalho. Ou gostar de Star Wars, Senhor dos Anéis, músicas e livros. Possuem opiniões semelhantes em vários aspectos. Interagem em um grupo mais restrito, com o mesmo perfil e as tiradas inteligentes com muitas gargalhadas são inevitáveis. Nenhum comentário que possa revelar alguma intimidade é feito. Um dia você percebe que o seu amigo virtual está desanimado, doente, triste e solitário. Acredita que chegou ao fim da linha e não espera mais nada da vida. Você tenta animá-lo e pede que os outros amigos virtuais também o apoiem. No caminho do apoio desinteressado e distante, surge alguma coisa entre os dois. Incompreensível, estranho e inesperado. Então você descobre que viveram na mesma cidade, moraram na mesma rua e tem vários conhecidos em comum. Estudaram na mesma escola, com intervalo de poucos anos e tiveram os mesmos professores. Descobre que conheceu várias namoradas dele e que estiveram juntos na mesma festa de ano novo. Mesmo assim, nunca se viram. Nunca se falaram. Entraram e saíram por portas semelhantes a vida toda, se roçando, se avistando, mas nunca se encontrando. Como é possível ter vivido tão perto um do outro sem nunca se encontrar? Qual foi o propósito do destino para os dois? Alguma coisa começa a se reconfigurar na sua cabeça e no seu coração. O passado e o presente se misturam em um turbilhão de imagens, fatos, locais e situações. Impossível não pensar no efeito borboleta... E se tivessem se encontrado? E se tivessem casado? E se os filhos fossem filhos dos dois? Se o passado é imutável, é possível mudar o futuro? Surge, então, aquela pergunta que pode mudar a sua vida: e se?

terça-feira, 3 de julho de 2012

Notas sobre um webromance

Este é um blog líquido. Sobre o amor líquido. Tanto no sentido pós-moderno de Zygmunt Bauman, quanto na quantidade de sentimentos doloridos que estão nas entrelinhas do texto. Antes que alguém se irrite e deixe nos comentários um "se atualiza, mulher!", eu vou dar um refresco. Vou contar um pouco sobre como é possível se reconstruir depois de estar partida em milhões de cacos espalhados por aí. Vida nova, cremosas! A vida segue e nem por isso é mais fácil. Sabe aquela história de substituir um amor por outro? É mentira! Cada amor é único, embora as pessoas sempre insistam em carregar as mazelas dos outros relacionamentos. Ninguém substitui ninguém, os compartimentos continuam lá, intocados, embora menos doloridos ou visíveis. Só que isso não é ruim. Os amores importantes devem ficar nos seus respectivos lugares dentro de nós e servir como fundação e amálgama para os amores seguintes. É um aprendizado que vamos construindo a cada relacionamento, a cada passo, sempre um dia de cada vez. Nada mais adequado para justificar a referência ao Bauman e ao mundo pós-moderno do que um webromance. Vou logo avisando: nas notas sobre um webromance, cabe tudo e mais um pouco! Amor, desencontros, sofrimento, diálogos inacreditáveis, amizade, desconfiança, casamento, destino, descobertas, piração, sexo... É leitura para quem enverga sem quebrar. Enjoy it!

sábado, 30 de junho de 2012

O tempo e o vento

Eu gosto de heróis. Gosto de homens heróis, daqueles que lutam pelo que acreditam e são tão fortes e corajosos que parecem saídos de contos de fadas. Reparem que eu não gosto de príncipes, eu gosto de heróis, não gosto dos que salvam a princesa, eu gosto daqueles que protegem o mundo. Pena que os heróis sejam tão raros... Hoje, os candidatos a herói se tornaram escravos do cotidiano, das coisas pequenas, de seus ternos finos e carros caros. Não acreditam em mais nada e, por não acreditarem em si mesmos, são apenas homens comuns. Eu conheci três heróis durante a minha vida toda: o Sr. Baba, o Sr. T e o Sr. L. Cada um com suas características especiais, todos eles salvaram a minha vida (pelo menos metaforicamente). O Sr. Baba foi o herói indestrutível com o rosto mais fofo do mundo e uma mão tão forte que virou lenda urbana na Refinaria de Duque de Caxias (dizem que ninguém era capaz de abrir um registro que tivesse sido fechado por ele). Era um herói que tropeçava, mas nunca tombava e custei a acreditar que vida pudesse ser finita nele. Foi a primeira pessoa próxima que eu perdi na minha vida e justamente na figura de pai. O Sr. T vocês já conhecem, um herói que tinha uma causa, um propósito na vida e foi fiel ao que acreditava até os seus últimos instantes. Ele me ensinou a essência da vida, me fez rir quase todos os dias durante o tempo em que convivemos, me ensinou a controlar a minha ira e amar as pessoas incondicionalmente. É um herói do bem no sentido mais fiel da palavra. O Sr. L é uma espécie de anti-herói porque ele mesmo não se reconhece como herói. É capaz de cuidar das pessoas, ser generoso e realmente se desconstruir todos os dias para ser uma pessoa melhor, afugentando todos os seus fantasmas em busca da felicidade. Ele me salvou deu uma tristeza tão imensa que estava corroendo a minha alma, me fez sair do quarto escuro e voltar a se alguém. Nenhum dos três está mais na minha vida hoje, lamento todos os dias por todos eles e lamento por mim. Volto para os livros e me distraio com os meus heróis preferidos, Capitão Rodrigo, Stark, Aragorn... Na verdade, apesar de amar tanto esses heróis e reconhecer a importância de cada um deles, eu sei que na aventura da minha vida só existe uma grande heroína: eu!

Dois anos, oito horas e quarenta e quatro minutos. Mas ninguém está contando, não é mesmo?

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Borboleta nos olhos

O texto a seguir é da minha querida Luciana, uma linda que é a borboleta nos olhos do título desta postagem e uma feiticeira das letras embaralhadas, organizadas, sequenciadas... Precisei reproduzir aqui porque as palavras do texto estavam gritando dentro da minha cabeça, gritos tão altos e agudos que eu precisava colocar para fora. Percebi a verdadeira dimensão da delicadeza do amor quando indiquei o texto para uma pessoa querida e recebi a seguinte resposta: - Você é Eu e eu sou Tu!

Eu, Personagem

Eu sou em labirintos. Escavo percursos pra me perder de mim. Planejo fugas e marco paredes com indicações de futuros que não percorrerei. Monstro encarcerado, sei minhas sombras. Sou besta e herói, fio e espera. Morro. Morro todas e tantas vezes: espada no peito, abandonada na ilha, caindo do penhasco. E nunca. Permaneço no oco de mim, desfiladeiros de histórias que se fazem em angústia. Sempre, sempre, sempre a solidão de uma cabeça cindida do corpo. O desejo de saber em desejos do outro e só encontrar os caminhos de volta. Esperar a oferenda de amores que morrem em minha mão, um após o outro. Morrem todos tão jovens e eu nunca sei o que poderiam ser. Lá fora, eu espero, o fio na minha mão indica o caminho da desilusão: quando voltar do espelho, verei a gratidão fazer morrer o que prometia ser eterno. Quando todas as histórias forem esquecidas, saberei: eu sou em labirintos.

Tu, Personagem

Quero. Quero que meus dedos sejam pincel e escrevam no teu corpo as letras do meu desejo. Quero fazer, da saliva, tinta, desenhando os indecifráveis signos da fome no ventre. Quero as narrativas sem sentido e as palavras cantadas como gemido na tua boca. Quero fazer do teu corpo mata-borrão do prazer que me sei dar. Quero deitar a cabeça no teu colo como se fosses livro e sugar-te como se ler fosse em quente sabor na língua. Quero as histórias do prazer em tatuagens passageiras pra começar a reinventar-nos logo a seguir do gozo. Quero esquecer os imperativos, a primeira pessoa, o verbo querer e deixar-me, pele, papel, pincel e letra, tudo eu, tudo teu. Até que, de novo, seja eu a escrever: quero.

domingo, 24 de junho de 2012

A resposta de Elizabeth

- Em casos como este creio que é costume estabelecido exprimir a nossa gratidão pelos sentimentos que nos são confessados, embora esses sentimentos não possam ser retribuídos. É natural que essa gratidão seja sentida. E se a experimentasse agora eu lhe agradeceria.Mas não posso desejar e nunca desejei a sua boa opinião, e aliás o senhor a confere a mim contra a sua vontade. Sinto muito ter de causar decepção a qualquer pessoa, não o faço de propósito, entretanto eu espero que ela seja de curta duração. Os sentimentos que, segundo o senhor me disse, o impediram durante muito tempo de reconhecer a sua afeição, irão socorrê-lo facilmente depois da presente explicação.

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Orgulho e Preconceito é um dos meus livros favoritos, eu adoro a mudança interna que o casal protagonista precisa fazer para alcançar o seu final feliz. É um livro com muitas matizes, mas eu fiz questão de transcrever as passagens que relatam a censura mútua ao comportamento dos dois porque acredito que o que acontece no livro é atemporal. Elizabeth e Darcy não são vítimas de um plano arquitetado por outra pessoa para separá-los (o relacionamento dos dois é desconhecido dos outros personagens até as páginas finais). Eles são vítimas de si mesmos, dos seus preconceitos, suposições e enganos. Entre outras razões, ela recusa o seu pedido de casamento porque ele afirma amá-la contra as suas convicções, contra a sua razão e contra a sua própria vontade. Eu duvido muito que o amor de Darcy e Elizabeth pudesse ser resolvido com a mesma facilidade retratada no livro, o ponto de ruptura dos dois é grande demais. A autora encontra a solução punindo ambos por seu comportamento e a partir da humilhação e sofrimento, eles conseguem superar as suas próprias fraquezas e concretizar o seu amor. O livro foi publicado em 1813 e, embora retrate uma sociedade que não existe mais, as impossibilidades de Elizabeth e Darcy acontecem todos os dias, em vários relacionamentos. Quantas vezes não perdemos a chance de viver uma história de amor porque fomos escravos do nosso orgulho, da nossa arrogância ou dos nossos próprios conflitos? Em quantos momentos da vida não deixamos algo importante para trás porque não relativizamos a história do outro e não nos descolamos da nossa própria história? Sei que as relações humanas são complexas, que é impossível retirar o contexto no qual estamos inseridos, mas eu gosto de pensar que poderíamos viver as nossas histórias de amor apenas fechando os olhos e fazendo a seguinte pergunta: o que o seu coração realmente sente?

Elizabeth e Darcy (3)

Darcy ficou sentado durante alguns instantes e depois, levantando-se, pôs-se a caminhar pela sala. Elizabeth ficou espantada, mas não disse nada. Depois de um silêncio de alguns minutos, aproximou-se agitado e disse:

- Em vão tenho lutado comigo mesmo; nada consegui. Meus sentimentos não podem ser reprimidos e preciso que me permita dizer-lhe que eu a admiro e amo ardentemente.

O espanto de Elizabeth não teve limites. Olhou fixamente para ele, enrubesceu, duvidou e ficou calada. Mr. Darcy considerou a atitude como um encorajamento e imediatamente fez-lhe a confissão de tudo o que sentia e desde há muito vinha sentindo. Falou bem, mas através das suas palavras outros sentimentos, além dos do coração, podiam ser percebidos. E ele não falava com mais eloquência da sua ternura do que do seu orgulho. O sentimento da inferioridade de Elizabeth, do rebaixamento que aquele amor constituía, os obstáculos de família que a razão sempre opusera à inclinação, foram descritos com um ardor que parecia devido ao seu amor-próprio ferido, mas que recomendava muito pouco as suas pretensões.

AUSTEN, Jane. Orgulho e preconceito. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Tradução de Lúcio Cardoso).

sábado, 23 de junho de 2012

Elizabeth e Darcy (2)

O dono da casa sentiu sinceramente que elas tivessem de partir tão cedo e procurou repetidamente persuadir Miss Bennet de que a partida não era prudente, que ela não estava ainda restabelecida. Mas Jane era firme quando sabia qual era o seu dever. Mr. Darcy ficou satisfeito. Elizabeth já se demorara bastante em Netherfield. Ela o atraía mais do que ele desejava. E Miss Bingley mostrava-se pouco gentil para com ela, e mais provocante para com ele do que de costume. Resolveu ajuizadamente mostrar-se mais cuidadoso e esconder os seus sentimentos. Não queria dar nenhuma esperança a Elizabeth e sabia que a sua atitude durante o último dia teria uma importância decisiva neste sentido. Firme neste propósito, quase não lhe dirigiu a palavra durante todo o sábado. E, embora ficassem sozinhos durante meia hora, não despregou os olhos do livro e nem uma só vez olhou para Elizabeth.

AUSTEN, Jane. Orgulho e preconceito. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Tradução de Lúcio Cardoso).

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Elizabeth e Darcy (1)

Elizabeth, que folheava os cadernos de música que estavam sobre o piano, não pôde deixar de observar que os olhos de Mr. Darcy se voltavam frequentemente na sua direção. Não podia supor que fosse um objeto de admiração para um homem tão importante. No entanto, achava estranho que ele a estivesse olhando por antipatia. Acabou imaginando, entretanto, que o que lhe atraía era algo errado e repreensível que existia na sua pessoa, e que contrastasse, aos olhos de Mr. Darcy, com as qualidades dos outros presentes. A suposição não a penalizou. Darcy lhe era indiferente demais para que desejasse a sua aprovação.

Depois de tocar algumas canções italianas, Miss Bingley atacou uma alegre canção escocesa e pouco depois Mr. Darcy, aproximando-se de Elizabeth, disse-lhe:

- A senhora não se sente inclinada a aproveitar esta oportunidade para dançar? - perguntou ele.

Ela sorriu, porém não disse nada. Ele repetiu a pergunta, um pouco espantado com o silêncio dela.

- Oh - disse Elizabeth -, ouvi o que perguntou antes, mas não pude determinar imediatamente o que deveria responder. O senhor queria que eu o fizesse afirmativamente para ter o prazer de desprezar as minhas preferências; mas eu sempre gosto de perturbar esses estratagemas e roubar às pessoas o lance que premeditam. Resolvi portanto responder-lhe que não desejo absolutamente dançar; e agora despreze-me, se ousar.

- Asseguro-lhe que não ouso.

Elizabeth, que tencionava ofendê-lo, ficou espantada com a amabilidade. Mas havia no tom dela um misto de doçura e de malícia que dificilmente ofenderia alguém. E Darcy nunca se sentira tão fascinado por uma mulher como estava por aquela. Acreditava realmente que, se não fosse a inferioridade das relações de Elizabeth, ele se encontraria realmente em perigo.

AUSTEN, Jane. Orgulho e preconceito. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Tradução de Lúcio Cardoso).

quinta-feira, 21 de junho de 2012

D. Maricota anda pensando muito!

- Sabe, mamãe, eu queria muito voltar a ser um bebê! disse D. Maricota pensativa.

- Um bebê, filha? Mas você está tão crescida, bonita, esperta... Por que você quer voltar a ser um bebezinho? perguntei.

- Porque se eu voltasse a ser bebê, ia dormir no colo, papai ia estar de volta, a gente ia cuidar dele e ele não ia morrer! respondeu ela.

- Ahnn... É, filha, ia ser muito bom mesmo!

Só agora eu entendi o desejo constante de D. Maricota em ser um bebê. Foi apenas o jeito que ela encontrou para dizer que sente saudades do tempo em que era feliz.

*****************

D. Maricota decidiu por conta própria sair das aulas de natação na escola e entrar no judô. Sabe quando a mãe deixa o filho fazer alguma coisa porque sabe que vai dar errado? Para que gastar horas de argumentação se basta esperar algumas semanas para dizer "eu sabia que não ia dar certo, eu avisei"? Pois é, só que deu certo e a mãe ficou com cara de bunda. Ainda não convencida, fui conversar com a professora de judô para saber como ela estava, se valia mesmo a pena etc. A professora deu uma gargalhada e disse que quando viu D.Maricota na aula se espantou muito e tinha certeza de que ela não aguentaria. - Ela é tão frágil e magrinha... disse. Acontece que D. Maricota adora os exercícios, escolhe os parceiros de luta e até já derrubou alguns (oh, céus, eu preciso de provas científicas para acreditar nisso! Cadê foto? Cadê vídeo? Cadê CSI?). Quando cheguei em casa, fui contar os elogios da professora para D. Maricota. Ela ouviu e disse distraída:

- Sabe, ela não é especialmente uma professora. É um professor, mas nós a chamamos de professora!

Obviamente, ela estava se referindo ao aspecto ambíguo da sexualidade da professora. Sem preconceito ou qualquer outra observação. É um professor que chamamos de professora. Simples assim! E depois as pessoas se preocupam com a opção sexual dos outros porque não sabem o que dizer aos filhos. Nós não explicamos nada aos nossos filhos, eles é que nos explicam!

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Ponto de ruptura

Uma coisa que aprendi desde cedo é que cada um sabe quais são os seus próprios limites. Não existe um padrão, o que é suportável para um pode não ser para outro, da mesma forma que uma determinada atitude pode ser suportável por um tempo e depois não ser mais. Cada relacionamento é uma combinação única dos pressupostos e atitudes de duas pessoas. Sendo assim, coisas que muitas vezes são inaceitáveis em uma relação, podem funcionar em outras. A questão é que justamente por não sabermos quais são os limites do outro (e muitas vezes, nem os nossos), é preciso ter cuidado quando esticamos demais a corda em um relacionamento. Os conflitos só devem ser levados ao extremo quando realmente estamos dispostos a pagar para ver. Se não temos certeza do que queremos ou se temos dúvidas sobre o que podemos ou não suportar, a melhor estratégia é se afastar por um tempo, colocar as ideias no lugar e só então discutir a relação com franqueza. No início do meu relacionamento com o Sr. T, o meu nível de estresse era sempre um tom acima do recomendado pela Organização Mundial de Saúde, bastava um conflito, um desentendimento qualquer, para eu ameaçar terminar tudo. Um dia, bem calmo, ele me disse que na próxima vez que eu ameaçasse ir embora, ele é quem iria. - Existem certas coisas que só devem ser ditas quando temos certeza do que queremos. A palavra tem poder e uma vez que pronunciada em voz alta, nunca mais tem volta. Pense bem no que você realmente deseja antes de dizer. Na verdade, o que ele estava dizendo é que o amor não pode ser tão frágil para ser ameaçado a cada instante, em cada crise. A premissa básica do amor é o desejo de ficar junto, resolver os problemas e superar as dificuldades. É acreditar que aquele amor é para sempre. Se é tão fácil de ser deixado, não é amor, é apenas um simulacro da Matrix...

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Cuidar e amar

Ao longo da vida, se tivermos bastante coragem, vamos construindo os nossos próprios valores e priorizando o que nos parece importante em detrimento de outras coisas que a sociedade valoriza. Você pode escolher para a sua vida ser e não ter. Como são decisões internas e dizem respeito somente à sua vida, ninguém tem nada a ver com isso, embora nem sempre isso aconteça na prática. Eu fico genuinamente chocada quando me deparo com os valores de outras pessoas explodindo na minha cara ao gerar algum tipo de intervenção na minha vida. Com a morte do Sr. T, a minha decisão de priorizar os sentimentos e viver melhor tornou-se ainda mais forte, pois vi de perto que nada do que temos nos serve na hora da morte. Equilibrium, é só o que eu preciso. O que prevalece nas minhas prioridades é a possibilidade de amar as pessoas, sem máscaras, sem subterfúgios e sem ambiguidade nos desejos. E amar significa cuidar, mesmo nas pequenas coisas, querer que o outro esteja bem, independente de nossa presença. Amar transcende, não aprisiona. Se é mesquinho e pequeno, não é amor. As pessoas sempre querem olhar para os relacionamentos (seja amizade, paixão, pais e filhos) e identificar o que cada um está recebendo em troca. O que cada um proporciona ao outro? Carinho? Compreensão? Bem-estar? Uma bela casa? Viagens? Parece que os sentimentos nunca traduzem a completude de uma relação, se você diz que o fulano ou fulana é um herdeiro, um executivo com salário de zilhões ou se é uma mulher curvilínea com uma beleza incomum, as pessoas respondem na hora com ar compreensivo: ahhh... Se você responde que está feliz no relacionamento apenas porque "ele me faz bem" ou "ele me liberta e me faz feliz", você está mentindo, é cega, louca, vulnerável, presa fácil... Amor não é sinônimo de sofrimento, mas ninguém deve evitar amar para não sofrer. As relações afetivas são marcadas pela finitude, sofremos com a perda dos nossos filhos quando eles começam a crescer e ir embora, com a morte de quem amamos ou mesmo com uma separação simples. A atitude mais sensata é sempre colocar na balança os sentimentos e avaliar se as perdas compensam o que ganhamos afetivamente. Enquanto compensar, o amor vale a pena e quando a balança virar, é hora de estar pronto para recomeçar!

terça-feira, 12 de junho de 2012

Confiança

Confiança é algo muito complexo nos relacionamentos e assume diversas perspectivas diferentes em cada situação. Confiamos no outro para cuidar de nós, para sustentar a casa, para ter uma carreira, para adivinhar os nossos pensamentos, para satisfazer os nossos desejos e, sobretudo, para não nos trair. Assim, confiança assume um leque de situações que variam bastante e dependem do nosso olhar naquele exato momento. As pessoas costumam dizer que "fulano traiu a minha confiança", mas eu duvido bastante que todos confiem de verdade no outro. Eu tenho uma amiga que quando o marido sai com os filhos, ela liga várias vezes para saber se está tudo bem, se foram ao lugar certo, se comeram, enfim, se estão vivos! O sujeito se irrita por ser tratado como um demente, com razão. A confiança se estabelece (ou não) ao longo da convivência e não é algo criado no início de uma relação. Nós vamos deliberadamente testando o outro durante o período inicial da relação até que em um dado momento acreditamos que podemos confiar plenamente naquela pessoa. Ninguém confia de imediato, quando muito projetamos as nossas expectativas em alguém, mas confiar mesmo... Ah, confiar é pular da ponte, como diria o Sr. T. É se jogar no nada, com todos os motivos do mundo para pensar que tudo aquilo vai dar errado e que o futuro será um desastre. É acreditar no amor do outro apenas porque tem fé. Parece absurdo, mas se não temos uma evidência científica para provar que alguém realmente nos ama e tudo que nos resta são apenas indicativos, o amor pode mesmo ser uma questão de fé... Se alguém nos dá todas as provas de lealdade e honestidade para confiarmos, é moleza. O difícil é confiar sem ter qualquer motivo para isso. Na verdade, não precisamos confiar no outro. Se ele mente e nos decepciona, o problema é dele e não meu. Precisamos confiar é no amor que sentimos, na imensidão do sentimento, na certeza do nosso desejo, mas talvez esse seja o grande passo que não queremos (ou podemos) dar.

sábado, 9 de junho de 2012

As resoluções de Dona Maricota

Dona Maricota está com dificuldades para aprender a ler, mas estamos todos empenhados em fazer com que ela supere os obstáculos e ganhe autonomia no seu processo de aprendizagem. Mamãe acha que ela perdeu um bom tempo em relação aos seus colegas enquanto tentava processar os acontecimentos em sua vida. Estava fisicamente presente na escola, mas a cabeça pairava em outros lugares. Uma das coisas que mais me surpreendeu nela foi o fato de que ela se tornou insegura. Ficou com medo de tudo, aranhas, formigueiros, siri na praia, ondas do mar, barulhos, trovão... Superar os medos não tem sido um processo fácil e tenho a impressão de que a hora que ela recuperar a coragem perdida, as questões cognitivas também vão se resolver. Nas últimas semanas ela tomou algumas decisões importantes por sua própria iniciativa. Convidou uma amiga para passar o dia aqui em casa, combinou com a mãe da menina, organizou a programação e só me comunicou o seu planejamento com um ar de "não estrague tudo, por favor". Deu tudo certo e ela ficou muito mais feliz e segura. Resolveu que queria sair da natação e começou a fazer aulas de judô na escola. Eu tinha certeza que seria um desastre porque ela é muito frágil, mas a professora achou ótimo e todo mundo na escola apoiou. Agora ela quer estudar inglês, só fala nisso e conta os dias para começar as aulas. Eu continuo observando de perto, comprando jogos de palavras para que ela exercite a leitura, contando histórias e ajudando no que eu posso. Entre a angústia e as certezas, vamos caminhando um pouco mais devagar do que eu gostaria, mas com tranquilidade de quem quer acertar sempre. Ela tem uma grande habilidade na cozinha, ontem ela fez um pavê delicioso praticamente sozinha e ficou muito orgulhosa com o resultado. São essas pequenas coisas da vida que nos proporcionam uma felicidade imensa e deveriam ser registradas e resgatadas pelo resto de nossa existência.

domingo, 1 de abril de 2012

O cotidiano

Ontem eu fui caminhar na praia sozinha e fiquei durante vários minutos observando uma família que estava ao meu lado. O pai tinha uma aparência excêntrica: cara de intelectual, negro, barbado, óculos redondos com armação de metal e dreads que chegavam à cintura. A esposa tinha um sotaque paulista, não era muito jovem e ficou meio incomodada com os meus olhares (provavelmente pensando que eu estava paquerando o marido). Eu já tinha a resposta pronta na ponta da língua: não é nada disso que a senhora está pensando... Os dois chamavam a atenção por ser um casal fisicamente diferente e os dois filhinhos pareciam as coisas mais fofas do mundo, o tipo de criança que dá vontade de apertar. Observando a família se divertindo na praia, fiquei com raiva de mim mesma por ainda sentir o coração apertado quando sou obrigada a reavivar as minhas lembranças. Queria não me importar mais, fazer de conta que o tempo levou as lembranças e desapareceu com os meus sentimentos. Eu esqueço de coisas que aconteceram recentemente, esqueço dos meus compromissos, esqueço o dever de casa de D. Maricota, esqueço que tenho que comprar leite no mercado, esqueço quase tudo e ao mesmo tempo não esqueço de nada... Não me lembro de quase nada do meu primeiro casamento, o sujeito continua por aí e é como se não existisse na minha vida. Está feliz, doente, triste ou rico? Absolutamente não me interessa, sou tão indiferente como se fosse uma pessoa estranha. Morto e enterrado para sempre! Porém, com a pessoa que morreu de verdade, é diferente. As lembranças da minha vida com o Sr. T nunca estão esmaecidas ou apagadas e penso que isso acontece porque eu não vivi um cotidiano com experiências que me fizessem substituir as minhas memórias. Quando eu vou à praia, ao banco, ao restaurante japonês, ao Fisl ou em outros lugares que estabelecem uma relação com o passado, sempre estou sozinha. Eu relembro essas vivências sozinha e a sensação de falta ou incompletude surge com intensidade. Preciso criar novas experiências, construir outros cotidianos possíveis para reescrever a minha história. Está mais do que na hora de fechar as lacunas e fazer movimentos concretos para encontrar os pontos de ruptura com o passado.

domingo, 18 de março de 2012

Livros

Eu tenho uma relação muito especial com livros, sempre tive um espaço especial na minha casa para eles, gosto de reler os meus preferidos infinitas vezes e sofro quando eles estão tão velhinhos que não aguentam sequer uma folheada. Entretanto, não sou ciumenta com eles, gosto de emprestar, acho muito importante que eles circulem. O Sr. T tinha vários livros e eu incorporei os títulos mais generalistas na minha estante, mas o que fazer com os livros específicos sobre teatro? No começo do ano passado, prometi ao meu colega de departamento (que é professor de Arte e Educação) que daria os livros do Sr. T para ele. Ele ficou honrado pois conhecia o Sr. T e assim como eu, adora livros. Treze meses depois, quem disse que eu consegui me desfazer dos livros? Eles continuavam lá no quartinho, encaixotados, esperando que eu tivesse coragem de me desfazer deles. Toda vez que eu encontrava com o Professor M. nos corredores da Universidade, ele me perguntava: - E os meus livros?Você desistiu de dar os livros para mim? Como explicar que eu sou uma covarde, uma ratinha inútil que não consegue elaborar algo tão simples como me desfazer de livros? Na sexta-feira passada eu não aguentei mais: sentei no chão do quartinho, conferi os livros um por um para levá-los para a Universidade. Cada vez que eu pegava em cada livro, lia os títulos e encontrava algum papel ou anotação dentro deles, meu coração batia tão forte e pesado que parecia que eu estava morrendo por dentro. Terminei de organizar a caixa de livros aos prantos e eu só conseguia pensar que o tempo não cura absolutamente nada! Ele apenas nos entorpece, nos faz esquecer, embota as nossas memórias para que a dor da perda fique em estado latente. Basta acontecer alguma coisa que acione as memórias relacionadas com a perda para que a dor apareça novamente. Forte, poderosa, devastadora... Quando isso acontece, sempre me sinto enganada pelas pessoas que dizem que a dor passa e que tudo vai acabar bem.Bom, mas como dizem por aí: o que não mata, fortalece!

segunda-feira, 5 de março de 2012

São apenas datas...

Eu não ligo para datas, não costumo me importar com aniversários e outras datas comemorativas. Quero dizer, não me importo além do normal, não sou do tipo que sofre se as pessoas não lembram ou não me cumprimentam. No momento atual, as datas possuem um sentido diferente para mim. São as datas que me conectam ao meu passado, revelam as minhas lembranças e ativam sensações que estavam perdidas. Hoje seria o aniversário do Sr. T e, como me lembrou o Facebook, ele faria 52 anos. Fui à praia sozinha para caminhar e dar um mergulho para equilibrar as energias. O mar estava estranhamente tranquilo, transparente e sem algas ou ondas. Consegui boiar por vários minutos enquanto eu olhava para o céu e sentia a brisa quente. Lembrei dos momentos em que estivemos juntos naquela mesma praia, fazendo exatamente isso: deixando o corpo flutuar no mar enquanto comentávamos que não existia nada entre nós e a África além daquele mar enorme. Chorei tanto dentro da água que pensei que nunca mais ia conseguir parar. Não chorei apenas por causa da minha perda, mas por todas as perdas que tenho passado ao longo da vida. Talvez a maior delas seja quando você acredita que o amor pode ser enorme, intenso, um reencontro de almas, um amor que cura, que pode mudar as pessoas e durar para sempre. Só que não...

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Férias

Tenho aproveitado as minhas férias nos últimos dois anos para retornar aos locais onde passei a maior parte da minha vida, apresentando um pouco da minha história para D.Maricota. Vou em busca do conforto dos amigos queridos, da familiaridade dos lugares, de reviver os programas e as boas sensações que tive no passado. É quase uma volta no túnel do tempo e o ritmo frenético do Rio de Janeiro associado ao clima de veraneio da região dos Lagos, renovam as energias e reestruturam a minha alma. D. Maricota adora cada minuto, o avião, o ônibus, o táxi, os lugares, as comidas... Contrariando o senso comum, ela é uma dessas crianças raras que gosta de novidades, não reclama do desconforto da viagem e está sempre querendo saber/ver mais. Este ano inovamos (e ousamos) ainda mais: ela viajou para São Paulo com a madrinha (conheceu o bairro da Liberdade, andou de metrô, passeou na Rua Augusta etc.), morremos de calor no zoológico do Rio e congelamos nas águas geladas da Praia do Forte, em Cabo Frio. Percebi que a cada nova aventura que surgia para nós, D. Maricota ousava mais um pouco, ficava mais segura e mais feliz. O mais importante em nossa viagem foi a certeza de que D. Maricota inspira um amor enorme em todos. Se eu não segurasse a onda, ela teria sido adotada na hora! :)

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Emília, Emília...

O grande desafio, no final do ano passado, foi encarar a festa de fim de ano na escola de D. Maricota. Em dezembro de 2010, ela não participou da festa por razões óbvias. Acredito que ela viu fotos ou ouviu os comentários sobre o espetáculo durante o ano letivo em 2011, já que desde junho ela comentava sobre a sua participação na peça de fim de ano. D. Maricota parecia contrariada por não ter participado no ano anterior e estava disposta a reparar a sua ausência em grande estilo. Ensaiou todos os dias, ficou animada com o figurino e não parecia mesmo que poderia desistir no último minuto. Reuni o resto de coragem que ainda me sobrou no baú dos sentimentos esfacelados e enfrentei os percalços das festas escolares: tumulto, crianças descontroladas, figurinos com problemas, pais histéricos, professores cansados etc. Apenas para esclarecer: essa era a atribuição do Sr. T, tudo relacionado com escola, espetáculos, reuniões de pais, conversas com professores, interação com outros pais e crianças, era total e completa responsabilidade dele! Um observador desavisado poderia deduzir que eu era uma mãe de aluguel ou uma madrasta contrariada em agradar a enteada, tamanho era o meu distanciamento e desinteresse. Mas não fiquem com pena do Sr. T e nem façam julgamentos apressados: ele adorava isso!! Passava horas na escola, conversava com todo mundo, sabia o nome de todas as crianças de cor... Enfim, de todos os problemas (que eu conheço de cor depois de três filhas) o maior de todos foi o teatro lotado com temperaturas próximas ao verão do Senegal. Não encontramos lugar para sentar, o suor escorria nas minhas costas ao ponto do vestido ficar colado no corpo e passei as duas horas do espetáculo em pé, na lateral do teatro com uma péssima visão do palco. Todo o desconforto foi recompensado com a entrada de D. Maricota no palco, vestida de Emília para cantar o clássico "mas a partir do momento/Que aprendeu a andar/Emília tomou uma pílula/E tagarelou,tagarelou a falar/Tagarelou,tagarelou a falar... Como D. Maricota curtiu a sua performance!! Dançou, cantou e saiu do palco feliz da vida! Estava orgulhosa dela mesma, segura e feliz por ter participado do evento. Saí do teatro calorento e daquela situação que me lembrava tanto o Sr. T com o coração enorme. A satisfação de D. Maricota e a sua capacidade de seguir em frente foi um alento na minha vida...Sim, existe vida pós-morte: ela está na superação da dor dos que ficam!