quarta-feira, 27 de julho de 2011

Quando eu me "destornei"

A minha relação com o Sr. T nunca foi restrita apenas ao plano afetivo de um relacionamento comum. Sem dúvida, é sempre o amor que nos move, mas antes de ser capaz de amar, é preciso ser. Quando eu era adolescente, fiquei apaixonada pelo livro "Uma aprendizagem, ou o livro dos prazeres" da Clarice Lispector, mas eu não entendia o processo que ela descrevia e a necessidade de autoconhecimento como condição prévia para viver um relacionamento pleno. Eu acreditei durante muitos anos que o casamento (e o amor) exige sacrifícios, perdas, concessões, coisas que são um preço a pagar pela estabilidade, companheirismo, cumplicidade e conhecimento mútuo. Quando você acredita nisso, morre todos os dias e tem a mais absoluta certeza de que é feliz. O Sr. T era uma pessoa intensa e não aceitou desde o começo as minhas ponderações. Assim como o Ulisses de Uma aprendizagem..., ele disse que só me queria se eu fosse inteira e para ser inteira, eu teria que pular da ponte. Eu resisti durante meses, fugi, briguei, terminei, voltei, manipulei... E ele lá, impassível e irredutível. Foi aí que eu me "destornei", mudei pelo avesso as minhas concepções de mundo e as minhas percepções da vida. Eu simplesmente escolhi ser feliz e acreditem, é preciso coragem para ser feliz porque vivemos em uma sociedade que nos diz que sofrer é privilégio (ou que você só pode alcançar a felicidade adquirindo coisas). Depois da morte do Sr. T, eu passei meses tentando me reencontrar e no meio de tantos medos, eu não queria voltar ao antes. Hoje, na minha relação com as pessoas, eu as vejo com as suas convicções e medos, morrendo um pouco todos os dias, exatamente como eu era e percebo, aliviada, que eu não retornei ao ponto de partida. O meu "destornar" é irreversível...

terça-feira, 26 de julho de 2011

O pai do Sr. T

O pai do Sr. T era um homem do interior que educou os filhos em princípios muito rígidos, com uma vida de muito trabalho e pouca diversão. A forma de educar dele era tão dura que o Sr. T quando fez dezoito anos decidiu ser fuzileiro e sair de casa. Uma semana antes da viagem, o pai do Sr.T arrasado com a decisão do filho, pediu que ele ficasse e teve uma conversa reveladora sobre a dificuldade em criar os filhos para que se tornassem "pessoas de bem". Segundo o Sr. T, foi a primeira vez que o pai conversava com ele em tom de igualdade. Depois dessa conversa, o Sr. T resolveu ficar e a relação dos dois se tornou uma daquelas coisas raras que nos comove ao observar. O Sr. T visitava o pai toda semana, não viajava sem passar na casa dele e pedir a benção e passava horas ouvindo os "causos" que o pai contava. Muitos anos depois, o pai do Sr. T fez uma confissão ao filho. Ele disse que no dia em que viu que perderia o seu filho mais querido, teve que tomar uma decisão. Ou ele mudava e passava a compreender as transformações no mundo e uma nova forma de amar a família ou então ele perderia todos. - Foi a decisão mais importante da minha vida, eu precisa repensar tudo em que eu acreditava. Então, eu me "destornei". O pai do Sr. T era um homem do campo que tornou-se padeiro na cidade e mal concluiu o antigo primário. Nem preciso comentar o nível de sabedoria e compreensão da vida que esse homem tinha. Como dizia o Sr T após a morte do pai, "ele foi um grande homem que soube fazer muito bem o que é mais importante na vida: amar as pessoas!"

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Somos um só (not!)

Uma coisa que me incomoda sobre a teoria dos relacionamentos é a ideia de que duas pessoas se transformam em uma, algo parecido como uma entidade indivisível. O mito da alma gêmea de Aristófanes parece muito romântico e fofo, mas penso que a ideia vem sendo apropriada de forma equivocada. Na busca da tal metade perdida, criamos uma série de artifícios para ajustar o outro à nossa fantasia de par ideal. Queremos saber tudo do outro, não existem segredos ou limites, não controlamos apenas os passos da nossa metade, queremos saber até dos seus pensamentos (quem nunca ouviu a frase amor, tá pensando em que agora?). Conhecemos tanto a pessoa com a qual convivemos que em poucos anos ela se torna sem mistérios, sem surpresas e sem...graça! Claro que a paixão acaba, quem pode resistir a tanto conhecimento mútuo? Eu já vivi as duas situações: um casamento com convivência diária intensa (vivia junto e trabalhava junto no mesmo lugar) e o meu casamento com o Sr. T que sempre me surpreendia contando algo inusitado sobre a sua história. No primeiro caso, eu não tinha qualquer sensação de que tinha encontrado a minha alma gêmea e no caso do Sr. T, eu tinha a certeza absoluta de que ele era a minha metade perdida. Detalhe maior ainda: apesar de nossa convivência intensa durante oitos anos, de todas as nossas conversas pela madrugada e diálogos incessantes, ainda assim, no velório dele foram ditas várias coisas que eu não sabia. Nós dois tínhamos o nosso espaço de compartilhamento e de individualidade muito bem negociado e, mesmo assim, o meu maior desafio depois que ele morreu foi saber quem eu era. Eu passei seis meses perdida, não existia mais o ser uno e eu tentava me lembrar das coisas que eu gostava, dos amigos que tinha, dos meus projetos individuais... Esse é o grande risco que corremos quando nos transformamos no tal ser uno: biologicamente continuaremos sendo dois e quando o outro faltar por qualquer motivo, você se torna um nada por muito tempo. E podem acreditar, ser um nada é uma sensação absolutamente desesperadora que ninguém deveria experimentar. A insanidade está ali, bem ao seu lado, esperando apenas um descuido para se apoderar de você e controlar a sua vida. É preciso muita reconstrução, reavaliação e um penoso retorno para seguir vivendo.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

A nossa música

Conheço pessoas que tem muitas dúvidas se a pessoa com quem estão se relacionando é mesmo a pessoa certa. Os americanos tem até um termo para definir a procura: The One ou Mr. Right, dependendo do contexto. Eu tenho uma opinião sobre isso: se você tem dúvidas se a pessoa escolhida é mesmo a certa, é porque não é! Sim, você pode refletir bastante sobre alguém que escolheu para viver junto, pode fazer testes de convivência, pode até achar que uma relação morna é natural e o que o amor é mesmo modorrento, mas duradouro enquanto a paixão é explosiva, mas acaba rápido. Tudo isso é possível, mas quando encontrar mesmo um amor de verdade, não vai ter dúvida: depois de quinze minutos você já vai saber se é para valer ou não. As escolhas posteriores (e racionais) envolvem outras coisas e nenhuma delas está relacionada com o amor. Você pode ponderar se as afinidades são reais, se tem os mesmos gostos e os mesmos valores, se o relacionamento é economicamente estável e até mesmo as vantagens e desvantagens de um relacionamento, mas como já cantava Tina Turner, What's Love Got To Do With It? (O que o amor tem a ver com isso?). Na primeira vez que eu e o Sr. ficamos juntos, o efeito foi tão devastador que ficamos em silêncio durante um longo tempo, ouvindo a música O Pastor, de Madredeus como a trilha sonora que mudaria as nossas vidas. E mudou mesmo porque afinal, ninguém volta ao que já deixou...


domingo, 10 de julho de 2011

A caixa

Hoje, ao arrumar o armário, encontrei uma linda caixa que ganhei de presente de duas orientandas e amigas queridas, poucos meses antes do Sr. T partir. Vou chamá-las de Srtas M&M's porque o texto a seguir contém informações impróprias para menores de 18 anos (e maiores de 65 também, dependendo da condição cardíaca). A caixa é linda, em vários tons esverdeados e sugere um conteúdo com produtos clássicos, na linha O Boticário, Água de Cheiro e Natura. Lembro que abri o presente na hora e não entendi a razão das duas fazerem tanto mistério e o motivo de tantas risadinhas. As Srtas M&M sempre foram muito comportadas, do tipo que não costuma falar palavrão, fazer alusões sexuais ou contar piada pesada. Logo, eu não tinha motivos para achar que a caixa poderia conter mais do que sabonetes cheirosos, mas quando eu abri... As duas prepararam um super kit de primeiros socorros eróticos para salvar qualquer casamento da rotina, com uma camisola que não tapava nem o bico do peito, óleos massageadores, uma calcinha inacreditavelmente escandalosa e o que mais me chocou (não, não é o que vocês estão pensando...): um manual escrito por uma delas com instruções detalhadas de como eu deveria usar os apetrechos! Cheguei em casa com o presente, o Sr. T inspecionou o conteúdo demoradamente e não esboçou qualquer surpresa nem fez qualquer comentário sobre os produtos. Disse apenas que as meninas eram muito atenciosas e tinham, obviamente, mandado um presente para nós dois. Acho que se eu tivesse chegado em casa com uma caixa de brocas e parafusos, ele teria sido mais receptivo. Uma semana depois, subvertendo (e muito!) as orientações do manual de uso, todo o conteúdo da caixa já tinha sido testado e aprovado. Com louvor!

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Alguém tem que aprender uma lição

Por razões maternas (e absolutamente necessárias) que não cabem detalhar aqui, eu passei pela experiência de conviver com o meu ex-marido no mesmo espaço doméstico no ano passado. Ele se casou novamente e uma das coisas que mais me deixou chocada ao observar a convivência dele com a atual esposa, foi que ele não aprendeu nada! Eu fiquei surpresa e triste por ele porque acredito que ninguém deve passar por nenhum sofrimento em vão, é preciso (mesmo!) aprender com a experiência e tentar melhorar como pessoa, principalmente nos relacionamentos afetivos. Ao fim do meu conturbado casamento, eu busquei refletir sobre o que tinha dado errado e qual foi a minha contribuição no erro. Toda reflexão dessa natureza é muito dolorida e difícil, mas se eu não tivesse feito isso, dificilmente eu teria conseguido viver bem com o Sr. T. Foi o meu penoso aprendizado que me fez querer ser uma pessoa melhor e isso, sem dúvida, se refletiu na nossa relação. Observando o meu ex-marido, percebi que ele age, fala e se relaciona com a esposa da mesma forma que fazia comigo e isso é péssimo. Em um determinado momento, ele saiu da cozinha reclamando de alguma coisa e eu quase levantei para ir resolver o problema, até que me dei conta de que eu não tinha nada mais a ver com aquilo. Respirei aliviada e pensei no quanto a minha relação com o Sr. T era diferente do meu primeiro casamento e o quanto eu mudei (e melhorei) nos últimos anos. Nos momentos iniciais do meu casamento com Sr. T, eu chegava a provocar brigas por coisas que ele sequer tinha feito, mas eu reproduzia toda a neurose do meu casamento anterior. Foi um processo duro para superar a minha própria loucura e começar a construir algo completamente novo. Passei a não usar mais as palavras nunca (você nunca faz o que eu...) e sempre (você sempre age assim...). Hoje eu consigo me enxergar com facilidade e mesmo não dando conta de consertar todos os defeitos, tenho muita tranquilidade para lidar com eles. Se é verdade o ditado "o que não mata, fortalece", eu estou quase igual ao Incrível Hulk!

domingo, 3 de julho de 2011

Triturada, mas inteira

Eu tenho sido um completo fiasco nas datas marcantes, basta acontecer um evento que possibilite o download das lembranças e eu fico acuada no canto da parede, como qualquer menina de cinco anos. É claro que isso me irrita profundamente, ficar vulnerável não é uma sensação agradável para ninguém, mas a questão agora é o que vou fazer a respeito disso. Eu tenho muita sorte de ter pessoas que gostam de mim e realmente me dão um grande apoio, mas se tem uma coisa que descobri nessa história toda de morte, é que você tem que passar por tudo sozinha. Os amigos são bem vindos, o carinho é essencial, mas ninguém no mundo pode ficar no seu lugar. Ponto final. No fisl, espaço essencialmente do Sr. T, eu conheci muitas pessoas interessantes e sempre é doloroso demais falar com as pessoas que conheciam o Sr. T. Para essas pessoas, a morte também é um mistério insondável e elas não sabem bem como lidar comigo. Mas isso não é só no fisl, eu tenho uma vizinha que não pode me encontrar sem fazer perguntas e sempre é ela que acaba com os olhos cheios de água. Felizmente, eu a encontro muito pouco... Preciso de férias, mas não somente férias do trabalho, estou precisando de férias de mim mesma, das minhas angústias, da minha tristeza e, sobretudo, da minha própria teimosia. Toda vez que eu penso que estou voltando à normalidade, acontece alguma coisa para provar por A+B que ainda estou fragilizada demais para lidar com o mundo real. Então, eu volto para o meu canto na parede...