terça-feira, 31 de maio de 2011

O legado em cada um de nós

Em todos os conflitos do cotidiano, o Sr. T sempre teve uma atitude pacificadora, mesmo quando a questão não envolvia a nossa relação. Em alguns momentos da minha vida, eu chegava do trabalho cuspindo marimbondos e escorpiões e ele nunca teve uma atitude incendiária, pelo contrário! O Sr. T sempre tentava ver o outro lado da questão, considerando os aspectos da fraqueza humana, os mal entendidos e até mesmo os elementos espirituais da questão. Perdi a conta de quantas vezes fiquei amuada por não encontrar eco nos meus acessos de fúria assassina, mas ele não foi sempre assim. Durante a nossa convivência eu descobri que ele tinha assumido várias brigas antes de me conhecer, algumas até insanas. Eu vou contar em outro post mais tarde os detalhes, mas a construção de um grande supermercado em João Pessoa, por exemplo, foi resultado da luta do Sr. T. Quando eu lembrava o seu passado de luta, ele respondia calmamente: por isso mesmo eu posso dizer que não vale a pena! Ontem eu participei de uma reunião complicada no trabalho, com pessoas queridas que precisavam tomar uma difícil decisão. Todas as minhas palavras na reunião buscavam a ponderação e a conciliação. Na volta para casa, vim chorando de mansinho porque percebi que uma parte do Sr. T ficou dentro do meu coração. Certa vez, o Sr. T me disse que o meu maior defeito era a ira, que eu precisava aprender a controlar os meus acessos de raiva. Depois da reunião, eu tive certeza de que o legado do Sr. T vive em várias coisas, mas - principalmente - no coração de cada um de nós.

domingo, 29 de maio de 2011

Diretor de palco

Eu gostava muito de ouvir as histórias do Sr. T de quando ele era diretor de palco do Teatro Castro Alves, em Salvador. Eu não o conhecia nessa época e ele contava tantas histórias interessantes que eu era capaz de ouvir horas o mesmo assunto. Eu sempre pedia para ele contar de novo as minhas histórias preferidas como, por exemplo, quando ele conheceu o Paulo Autran, as exigências e chatices dos atores, os grandes espetáculos... Foi com o Sr. T que eu aprendi o que é um palco italiano, que os grandes teatros tem vários andares abaixo do palco, que existem cofres tão grandes que cabem um cenário inteiro nos teatros e são muito usados para guardar os figurinos completos dos balés (são caríssimos), que existem elevadores para transportar elefantes como o da ópera Aída (meu Deus, eu não sabia que usavam elefantes de verdade dentro de teatros fechados) e que os bailarinos comem muito por causa do esforço da dança. Rá! Tenho certeza que vocês também não sabiam dessas coisas... Uma das minhas histórias favoritas é sobre o show da Maria Bethânia que costuma atrair tantas fãs, digamos, ardorosas, que o teatro fazia uma concessão especial para que ela entrasse pela lateral dentro do carro até a entrada para o camarim. O Sr. T disse que um grupo de fãs (emocionadíssimas!) ficava próximo ao palco com dúzias de rosas na mão que eram jogadas no palco durante o show, acompanhadas de gritos histéricos (maravilhosa, vitaminada, divina, poderosa...). Pouco tempo depois de um show da Maria Bethânia com lotação esgotada, Marisa Monte (em início de carreira) fez a mesma exigência: queria entrar pela lateral para não ser assediada pelos fãs. Ah, coitada, a direção do teatro disse um sonoro não-minha-filha-vai-se-catar-e-se-enxerga! Tem como não sentir falta de tantas histórias divertidas?

sábado, 21 de maio de 2011

Alta Fidelidade

Um dia desses eu estava conversando com um amigo sobre o conceito filosófico de fidelidade. É um assunto espinhoso porque envolve as questões impostas pela sociedade que estão relacionadas com o controle e o desejo (e o direito) individual de cada um de nós em ser feliz. A busca pela felicidade só é simples nos filmes românticos do tipo água com açúcar, a realidade é muito diferente. Em sua essência, quando sentimos desejo por outra pessoa, a infidelidade já aconteceu. Como é impossível controlar o desejo de qualquer ser humano, as convenções foram criadas: só é infidelidade quando acontece o contato físico, quase estabelece um relacionamento etc e tal. A web está bagunçando bastante os modelos de fidelidade adotados até agora, já que é possível obter prazer em relações virtuais sem nunca ter encontrado a outra metade pessoalmente. :) O fato é que eu tenho uma visão muito particular sobre o tema, acredito mesmo que cada casal deve negociar os seus próprios limites, independente das convenções sociais. Além disso, existem vários outros fatores que envolvem a (in)fidelidade que precisam ser considerados em cada relação (carência, ressentimento, fraqueza, vingança, insatisfação etc). Apesar da minha posição liberal a favor da livre negociação, não existia muita opção em meu relacionamento com o Sr. T. Eu queria exclusividade absoluta, não apenas no aspecto físico, mas também mental e até transcendental! Nós conversávamos bastante sobre isso e, estranhamente, a minha relação de fidelidade com ele nunca foi uma imposição. Durante todo o tempo em que estivemos juntos, nunca me senti atraída por ninguém que valesse a pena mais do que um sorriso de dez segundos. Talvez esse quadro mudasse com o tempo e nós teríamos renegociado as bases de nossa relação. Ou talvez o Sr. T estaria trancado em um quarto escuro, amordaçado com fita Silver Tape até hoje. Quem pode saber?

terça-feira, 17 de maio de 2011

Sonhos roubados

Ser criança significa ter o futuro pela frente e todos nós já construímos castelos no ar. Eu sonhava em ser bailarina, professora, cientista, feiticeira e exploradora (é incrível como as crianças só pensam em coisas legais, criança que diz que quer ser milionário quando crescer está reproduzindo as conversas dos adultos). Considerando o alto nível de imaginação de uma criança, a minha realidade de adulta não foi tão ruim assim, pois consegui ser pelo menos uma das opções dos meus sonhos. Quando você entra para a faculdade, várias profissões idealizadas quando criança são descartadas. Não dá para ser advogado/bombeiro ou médico/astronauta. Bom, já na faculdade com vinte e poucos anos, você sonha em ser o tampa da profissão, imagina uma carreira de sucesso e que será uma referência na área (daí a realidade do estágio na qual várias pessoas gritam com você e te chamam de tapada o dia inteiro faz você cair na real). Mas tudo bem, se não deu para ser o super profissional do século, ainda resta o sonho de encontrar o príncipe encantado. Dez anos depois, o príncipe virou sapo e com um pouco mais de condições de enfrentar o mercado de trabalho, você vai à luta. Afinal, está com trinta e poucos anos e todo mundo sabe que as balzaquianas são um arraso profissionalmente e sexualmente (uau!). Algum tempo depois você continua dando o sangue no trabalho, subindo na carreira e encontra um novo amor. Legal, já é mesmo tempo de se acomodar, se dedicar ao verdadeiro amor e aproveitar mais a vida. Segundo casamento, filhos, novos lugares e novos empregos. Você começa agora a sonhar com o futuro para colher os frutos do trabalho, imagina uma aposentadoria tranquila com um restaurante riponga em Pipa. Já escolheu o lugar, o menu e a decoração. Está só esperando o tempo passar, terminar de contribuir com a p*&# da previdência para, finalmente, aproveitar a vida. No interlúdio, você acorda um dia e está sozinha. Já tem mais de quarenta anos e já não sabe mais o que sonhar. Já foram tantos sonhos roubados que fica difícil construir os castelos de novo. Bate o desânimo e você descobre que fez uma opção errada quando era criança, se tivesse escolhido corretamente, todo o resto poderia ser consertado. Afinal, por que não escolheu ser feiticeira? Calma, nem tudo está perdido! Sabe-se lá se ainda dá tempo...

domingo, 15 de maio de 2011

Diálogos

Eu imagino que quem estrutura um relacionamento na base da dependência deve sofrer muito quando está sozinho. O processo de recuperação da autonomia não é mesmo fácil, implica em cortar os laços de dependência, descobrir-se novamente como pessoa, se reestruturar e só depois conquistar a autonomia. Considerando esta lógica, deveria ser mais fácil sair de um relacionamento estruturado sobre o compartilhamento. Aqui reside um engano. Quando você estabelece uma relação de dependência, sente falta do que o outro proporcionava. Na relação de passividade, é a falta de alguém que era responsável por cuidar de nós. Não é uma relação de mão dupla, existe apenas a necessidade de suprir, e, de fato, deve ser um duro golpe quando se perde o provedor. Porém, na relação na qual se compartilha, existe um movimento duplo, as ações vão e vem na mesma proporção. Assim, quando se perde a outra parte, não se perde apenas aquilo que se recebe do outro, mas também o que se proporciona. No meu caso, a maior perda é o diálogo. Através de intermináveis conversas, as nossas trocas eram construídas, a palavra (escrita ou falada) era a nossa ferramenta para dividir, trocar, acrescentar e crescer. O mais curioso é que na minha relação com o Sr. T nenhum de nós dois era de tagarelar muito ou descrever detalhes intermináveis. Normalmente, eu contava alguma coisa, relatava as minhas impressões e ele encerrava a análise com um comentário curto. Isso não acontecia por falta de sintonia ou comunicação, pelo contrário! Era justamente por entendermos perfeitamente as necessidades do outro que as palavras não precisavam ser inteiras. Bastava uma síntese e um olhar para todo o resto ser esclarecido. Afinal, o que é o amor senão compreensão?

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Então, fazemos biscoitos!

A semana foi pauleira, uma sombra vinda de Mordor (Tolkien) se apoderou de nós e ficamos um fiapo de gente. Para dizer a verdade, não sei se eu fico arrasada quando D. Maricota desmonta no seu choro convulsivo antes de dormir com saudades do pai ou se ela fica triste porque percebe a minha tristeza. O fato é que nós duas andamos muito tristonhas e só hoje a nuvem começou a se dissipar. Diante de um quadro tão deprê, o que fazemos? Biscoitos! Colocamos a mão na massa (literalmente), misturamos a farinha, a manteiga e o açúcar. Cortamos os biscoitos em formatos fofos - coração, lua, estrela, beijo - e ficamos vigiando o forno até que eles ficaram dourados e deliciosos. Quase perdemos a hora da escola, almoçamos sopa requentada, mas o sorriso e o orgulho dela ao levar os biscoitos para a "tia" da escola fizeram todo o esforço valer a pena! Catei na internet mais de dez receitas diferentes de biscoitos e agora tenho um arsenal antideprê até o final do ano. Agora vocês já sabem, bateu a depressão? Assem biscoitos, meus lindos e mandem qualquer desequilíbrio espiritual/emocional para o raio que o parta!

domingo, 8 de maio de 2011

Dia das mães

Sexta-feira foi a festa da família na escola de D. Maricota. A escola não chama de dias das mães para não trabalhar na perspectiva da família padrão, mas no fundo o objetivo era esse mesmo. A festa foi a inauguração de uma vernissage com os trabalhos das crianças. Segundo D. Maricota, eles tinham uma música bem linda para cantar para as mães. O primeiro problema: eu tinha aula no horário, mas como as chuvas de Recife estão provocando o caos na cidade, a aula foi cancelada e pude vir para casa mais cedo. O segundo problema: o local. Eu não conhecia o lugar onde seria realizada a festa e apelei para o Google Maps e o GPS. Ambos funcionaram perfeitamente, mas quando nós chegamos ao local... Não tinha lugar para estacionar e fui obrigada a dar várias voltas no quarteirão. D. Maricota acabou dormindo no carro e o bairro é pouco recomendável, principalmente de noite. Consegui parar no lugar mais próximo, peguei D. Maricota no colo e praticamente corri pelas ruas até o local da festa. Quando entramos, ela empacou e disse baixinho: - Mamãe, é aqui que eu vinha com papai muitas vezes! Ele sempre me trazia aqui! Só então eu me dei conta que o tal lugar ficava ao lado da Casa Brasil do IFET, uma das unidades que ele coordenou durante três anos. O prédio da festa era um local de artes e exposições da Universidade, como ex-professor e da área, obviamente ele teria passado ali várias vezes com ela. Nem preciso dizer que a noite acabou para nós duas. Ela não quis mais sair do meu colo e assisti a peça que estava sendo apresentada com ela agarrada no meu pescoço. A inauguração da vernissage terminava com um coquetel, mas ela não quis comer nada (nem eu). Resolvi vir embora mais cedo com a certeza de que não deveria ter ido. Não é aconselhável para ninguém mexer na ferida que ainda não está completamente cicatrizada...

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Havaianas

Aqui em casa, nós simplesmente a-ma-mos as sandálias havaianas. É o nosso calçado preferido em dias de chuva ou sol. D. Maricota usou havaianas desde que era um bebezinho de fraldas e só comprei sandálias e tênis para ela depois dos três anos. Semana passada, a minha sandália havaiana fofa arrebentou e preciso contar em que situação dramática isso aconteceu. Uma das coisas mais importantes que aprendi com o Sr. T foi ter paciência (a dele era de Jó) com os filhos e nunca perder o controle da situação (que inevitavelmente resultaria em gritos e palmadas). Eu precisava ir ao mercado e mais cedo D. Maricota tinha optado por ficar com a irmã mais velha e não sair comigo. Fui ao mercado e quando cheguei em casa descobri que o sal tinha acabado. Na confusão de ter que fazer o almoço noves fora a irritação de ter esquecido alguma coisa, saí de casa sem perguntar se ela queria ir comigo. Já no elevador ouvi que ela estava chorando, mas pensei que fosse apenas uma manha passageira. Ao chegar na garagem, puf! do nada a minha linda havaiana slim arrebentou. Voltei para casa e descobri que D. Maricota estava aos prantos, desesperada porque queria sair comigo e magoadíssima porque tinha sido deixada para trás. Quando eu disse para a minha filha mais velha o motivo de ter voltado, ela respondeu: -É, o santo de D. Maricota é forte mesmo! Com a sandália arrebentada, a minha primeira ação foi fazer o que sempre fiz na mesma situação: procurar as sandálias do Sr. T! Eu adorava calçar as havaianas dele, mesmo sendo quatro números a mais do que o meu. Quando eu estava com os pés inchados e cansados, eu me enfiava na sandália dele e andava pela casa para descansar os pés. Perdi a conta das vezes que ele, já irritado, me perguntava onde eu tinha deixado as havaianas dele! Quando eu precisava comprar sandálias novas por algum motivo, ficava enrolando semanas para comprar um novo par só para usar bastante as dele. Sem ter as havaianas tamanho extra large amaciadas para calçar, fui obrigada a comprar uma nova no dia seguinte. Azul, lindinha, mas sem graça demais diante da brincadeira perdida...

domingo, 1 de maio de 2011

O desenho

D. Maricota está na fase dos desenhos da família na escola. Ontem ela disse que a "tia" pediu que ela desenhasse apenas as pessoas que moravam na casa. Segundo D. Maricota, o pai da "tia" também foi para o céu e virou uma estrela. Deduzi que a primeira versão do desenho dela tenha incluído a figura do pai também. Esse é um ponto delicado. Uma das maiores angústias dela está relacionada com o fato de não ter pai e eu sempre insisto que ela não pode dizer isso. Uma pessoa que não sabe quem é o seu pai ou nunca teve contato com a figura paterna, pode dizer com propriedade que não tem pai. Mas e alguém que tem a lembrança do pai presente e parte de sua história? É correto dizer que não tem pai? As duas situações não são completamente diferentes? Bom, eu sempre digo que ela tem pai sim, embora ele não esteja mais aqui. Ele vive na nossa memória e no nosso amor que continua existindo. Uma das coisas que mais me surpreendeu quando lidei com a morte de uma pessoa querida pela primeira vez, foi a constatação de que o nosso amor não acaba, mesmo que a pessoa não exista mais. Talvez daí venha a angústia, o amor que você sente está canalizado para um vazio e não é retribuído. O amor se perde na ausência.